terça-feira, 13 de novembro de 2007

Ser e parecer

“Não basta à mulher de César ser honesta, ela tem de parecer honesta”. O ditado é velho e conhecido. Não há como negar. Então porque ninguém o leva a sério? Não se acredita mais na sabedoria popular?

Hoje li matéria anunciando a criação de um mega shopping em São Paulo, o Shopping Pari – com 30 mil m2, 2 mil comerciantes e uma expectativa de público que chega a 10 mil pessoas por dia.

O empreendimento é mais uma iniciativa do já conhecido Law Kin Chong. A julgar pelo histórico do empresário, tem tudo para dar certo. Afinal, ninguém melhor do que ele sabe o que está fazendo.

Mas o que chama mesmo a atenção é o apoio da subprefeitura da Mooca a esse novo centro comercial.

Não é só o histórico profissional de Law Kin Chong que é bastante conhecido, sua “ficha corrida” também. Condenado por corrupção, foi preso em 2004 e hoje cumpre pena em regime aberto. Responde ainda a dois outros processos: um por contrabando e outro por formação de quadrilha.

Não se pode negar ao empresário o direito de trabalhar. Apesar de condenado, ele vem cumprindo sua pena. Quanto aos outros processos, ainda não há condenação. (Você pode até discordar da lei, porém é assim que funciona.)

Mas daí ao Estado apoiar a iniciativa de Law vai uma grande distância. Pior ainda o comentário atribuído ao subprefeito da Mooca de que a sua competência se restringiria a verificar a documentação e a segurança do local. O resto seria problema da polícia.

Parece que ele esqueceu que tanto ele quanto a polícia representam, para nós, cidadãos, o Estado. Já somos uma sociedade de descrentes. Poucos acreditam na idoneidade do Estado, em especial da Administração Pública. Mas se esta não se der ao trabalho de ao menos cuidar da sua imagem, nem essa pouca credibilidade há de restar.

Quando começaram a surgir, eu tive dificuldade em entender como esses espaços – centros comerciais onde se vende mercadorias, piratas ou não, sem nota fiscal e a preços baixos, para dizer o mínimo – poderiam funcionar assim, publicamente, em lugares conhecidos e de fácil acesso.

Depois veio a polícia federal, com seus carros e agentes. Passaram a estacionar, de tempos em tempos, em cima das calçadas, atrapalhando a circulação dos pedestres, e a derramar um montão de agentes armados pelos corredores estreitos desses centros comerciais, recolhendo mercadorias e fechando lojas. Ainda assim, os tais centros continuaram funcionando.

Agora isso. O Estado como grande apoiador desse novo “shopping popular”, comandado por Law Kin Chong.

Assim fica cada vez mais difícil entender alguma coisa.

segunda-feira, 12 de novembro de 2007

Homem-Aranha

Em que momento perdemos a capacidade de acreditar? Na semana passada, o homem-aranha ganhou os noticiários nacionais. Não o homem-aranha personagem de ficção, mas sim um homem-aranha real. Um menino de 5 anos fantasiado.

O motivo de toda essa repercussão foi um feito pra lá de heróico, desses de por personagem de HQ no chinelo. O menino entrou numa casa em chamas para salvar uma menina de menos de 2 anos que estava presa lá dentro. Conseguiu. Saíram de lá ilesos.

A justificativa para essa atitude, a razão de nenhum medo? “O homem-aranha não é fraco e não tem medo de nada”, declarou o moleque. Aquela simples fantasia, um pedaço de pano colorido, era o suficiente para transformar o menino em herói. E não havia espaço para dúvidas.

Tentei lembrar de quando eu era criança, mas não consegui. Minha memória é péssima. Mas me lembrei das crianças que vemos por aí, andando nas ruas fantasiadas, voltando da escola ou de uma festinha, e do rosto delas, da alegria, do encantamento, da certeza de serem princesas, fadas, índios, super-heróis.

Qual a diferença entre a imaginação e a realidade? Não vejo muita. Tanto uma como outra produzem efeitos muito parecidos: alegria, dor, coragem, medo, enfim, todo um portfólio de emoções. Mudam o tempo todo. Fogem ao nosso controle.

Quando é que perdemos a capacidade de imaginar e de acreditar em nossa imaginação? Acho que cedo demais. Cada vez mais cedo.

Há 15, 2o anos, fomos jovens sem ideologias, só tédio. De lá pra cá, alguma coisa mudou?

sexta-feira, 9 de novembro de 2007

Seja feliz, mate um político!

Hoje, no caminho para o trabalho, um grafite me chamou a atenção. Mostrava uma menininha meiga, com cara de propaganda de margarina dos anos 60. Um vestidinho branco, estampado, com babadinhos na barra. Sapatinho boneca.

No ombro, um lança mísseis. A estampa do vestidinho: caveiras. Logo acima do desenho, uma frase, quase um slogan: “Seja feliz, mate um político!”.

Letrinhas vazadas à régua, sérias, trabalho cuidadoso, e não uma pichação qualquer, feita às pressas, rápido e escondido. Era mesmo um grafite.

O pior é que não deu pra segurar um sorriso. Engraçada essa nossa catarse. Já faz tempo que temos eleições diretas no país, mas ainda não nos parece que somos responsáveis pelas pessoas que governam, os tais políticos.

A idéia geral é de que todo político é corrupto. Na verdade, parece que “política” virou espécie do gênero corrupção. Quem se aventura a defender a classe? É a expressão máxima do determinismo. Se é político, é corrupto, não há nada mais a fazer.

A solução para alguns, como nosso amigo grafiteiro, parece ser o extermínio. Mata-se todo mundo e assim resolve-se o problema.

Mas, na verdade, mais do que uma proposta, a menininha em sapatinhos de boneca parece ser uma espécie de desabafo. “Quero deixar bem claro que vocês não estão me enganando. É verdade, eu estou aqui no meu canto, vivendo a minha vida, conivente. Mas eu sei muito bem o que vocês estão fazendo e não concordo com isso”.

Ninguém quer reconhecer que ainda tem uma esperança, uma esperançazinha boba, de ver as coisas acontecerem, de ver alguém – assim indeterminado, sem nome, sem rosto, sem voz – resolver tudo. Temos vergonha de admitir esse pensamento ingênuo, e ridículo. A idéia do salvador da pátria.

Queríamos tanto que fosse diferente! Mesmo não fazendo nada – por não sabermos o quê ou como, ou mesmo por termos medo de sair perdendo nessa história – esperamos que alguém faça. Os “políticos”. Será que não dava pra eles fazerem alguma coisa boa? Já que prometem tanto!

Esperança desatendida. Expectativa frustrada. Raiva.

Um míssil dirigido ao Congresso Nacional para acabar com tudo. Desde que não fosse lançado às segundas ou sextas-feiras, ou durante os recessos, as férias, os períodos de descanso, de festas, ou pré-eleitorais, pois, nesses casos, certamente encontraria o plenário vazio. Nada de explosivos, só frustração, desalento, desesperança, tristeza mesmo.

Lidamos melhor com o humor.

quinta-feira, 8 de novembro de 2007

Quase bonito

Eu andava feliz porque tinha descoberto que conseguia ler no ônibus. Lá ia eu, todo santo dia, com um livrinho na bolsa. Lia na ida para o trabalho. Lia na volta. Uma delícia a sensação de que não estamos perdendo tempo no trânsito.

Mas minha felicidade durou pouco. Com a reforma das calçadas da Paulista, acabaram com meu ponto de ônibus, e o próximo, ficou longe demais. Agora, em vez de seguir pelo “cartão postal de São Paulo”, sigo por outra avenida. Tenho menos opções de linhas, mas o trânsito flui melhor. Só então eu percebi a razão de eu, enfim, ter conseguido ler no ônibus sem fica enjoada: o trânsito da Paulista (era como ler parada).

Todo esse preâmbulo para dizer que, como agora não posso ler, fico observando os “passantes”. Hoje vi uma blusa verde. De relance, achei linda. Olhei de novo e vi um detalhe, um detalhezinho mínimo, uma pequena plaquinha de metal, que arruinava tudo.

Quase bonita. A blusa passou perto de ser bonita, o que não significa dizer que ela era sequer usável. Não era. O “quase” significa que ela se desviou por um triz. Com uma mudança mínima, poderia ser bonita, mas, do jeito que estava, era horrorosa. Da blusa, passei para todo o resto.

Seu relatório está quase bom. Estou quase terminando. Ele está quase conseguindo. Quase, quase, quase. Não significa, necessariamente, que você está a um passo de concluir alguma coisa. Pode indicar apenas que você se perdeu por um nada, ou “quase” nada. Enfim, “quase” não é elogio.

Ela quase se casou com o Ernesto, mas ele acabou escolhendo a vizinha. Ele quase conseguiu aquele emprego, não fosse ter bebido antes da entrevista para tomar coragem. Eles quase compraram a casa, pena que não tivessem o dinheiro. Eu quase acertei um soco nele.

Fiquei imaginando uma pessoa “quase bonita”. Uma pessoa quase bonita pode não ser sequer apresentável. Se não fosse o nariz, ele seria bonito. Mas o nariz – aquele nariz – arruína tudo. Você tenta olhar para o dedão do pé do cara, mas o nariz não deixa, atrai seus olhos como um imã.

Eta palavrinha traiçoeira!

quarta-feira, 7 de novembro de 2007

A ditadura da escova

Eu resisti o quanto pude. No final, porém, capitulei. Abandonei meus cachos – na verdade, foram eles que me abandonaram primeiro – e aderi à escova. Escova, e não chapinha! Isso sim teria sido o fim do poço. Foi como descobri um novo universo de torturas e preocupações.

A primeira dificuldade é explicar de que jeito eu gosto do meu cabelo. A comunicação nunca foi tão difícil. E olhe que eu me considera especialista no assunto! (Especialista é alguém capaz de analisar e pôr defeito em tudo, e não, necessariamente, quem sabe fazer direito.) Tive que apelar para imagens grosseiras: não quero nada que se pareça com uma cúpula de abajur ou com as cerdas de uma vassoura. Descobri também que o conceito de “cabelo natural” é bastante fluido.

Nada de sprays e cremes com cheiro de baunilha ou de qualquer outro doce. No final da tarde, eles me dão enjôo ou fome. De preferência, nada de cheiro, pois aí também não há consenso possível.

Depois a preocupação com o sereno, a garoa, a chuva. O suor na ginástica. O vapor do banho. A técnica desenvolvida para se manejar o guarda-chuva ao entrar ou sair do carro – o que requer muita sincronia e um timing perfeito. (Abra uma fresta da porta, o suficiente para passar sua mão, estique o braço para fora e abra o guarda-chuva antes de passar seu corpo pelo vão – molha um pouco o carro, é verdade, mas quem se importa?!)

Esta semana, no entanto, vivi o ápice: descobri uma nova técnica, talvez milenar, quem sabe.

Da cozinha ao salão – Se você já fez escova um dia, sabe que, além de puxarem seus cabelos – aqueles fiozinhos que se enroscam do lado da escova –, muitas vezes sofremos queimaduras, ora no couro cabeludo, ora nas orelhas. Coisa leve, na maioria das vezes.

Por conta disso, alguém teve a brilhante idéia de desenvolver essa técnica especial, que faz uso de um artefato de madeira, muito comum e freqüentemente utilizado nas cozinhas brasileiras, de cabeça arredondada e côncava e cabo comprido.

O que eu vi era todo pintado à mão – por uma criança talvez? – azul, vermelho, verde e amarelo. Um capricho! Você simplesmente apóia a parte côncava contra a sua orelha, segurando pelo cabo, para protegê-la do secador.

Agora pare um momento e imagine a cena. Detalhe: a frente do salão de “beleza” é toda de vidro e dá para uma galeria, como se fosse uma loja. Quem passa por ali – e não é pouca gente – vê tudo o que acontece lá dentro.)

Pois é, a imagem não é muito bonita. E confesso que a técnica não é lá muito moderna nem exige aplicação de grandes avanços tecnológicos. Mas a verdade é que funciona.

Eu, particularmente, desconfio de todo o processo. Por que ficar tão feia e sofrer tanto só para ficar bonita? Será que é essa a técnica dos salões de beleza? Por pelo menos meia hora você fica se olhando naquele espelho, sentindo-se ridícula e sofrendo. Assim, quando a sessão de tortura acaba você acha tudo lindo e maravilhoso, inclusive você. Não seria mais fácil quem tem cabelo liso usar liso e quem tem cabelo crespo usar crespo?

Quanto a mim, como, no momento, meus cabelos crespos não estão mais crespos, mas apenas rebeldes, não tenho outra opção se não deixá-los lisos. Portanto, vamos à escova!

terça-feira, 6 de novembro de 2007

Nóia

Decididamente, ando sem paciência. Hoje tive a prova disso. Estava tomando meu tradicional café, quando duas garotas passaram por mim e se sentaram no sofá às minhas costas. Chegaram falando e continuaram falando sem parar.

Falavam rápido. Só consegui pescar algumas palavras soltas. Mas já foi o suficiente para ter uma idéia do que se seguiria.

Givenchy - umas micro-cápsulas que se adaptam à sua cor de pele - é tipo assim - mó legal - entendeu?

Obviamente o assunto era maquiagem. O quê, exatamente, não sei. Até aí, tudo bem. Apesar de elas não conseguirem transformar uma só pensamento numa frase completa, minimamente organizada, eu ainda estava agüentando.

É foda! - mó conceituada - juuuura?! - é tréshi - tá ligado - aaahh, dá licença, meu! - um puta role.

Repetia para mim mesma: “Calma, você tem 35, e não 70. Deixa as meninas em paz. Que tal um pouquinho de auto-controle?”.

O problema era que, além do linguajar, a temática também não era lá essas coisas. “Eu assumi, sou perua mesmo! E daí? Gosto de usar salto, uso blush todo dia. Ah, dá licença! Eles têm medo de... do diferente, tem que ser todo mundo igual.” O tom era um misto de desabafo e desafio. Ou talvez fosse pura exibição mesmo, só para impressionar a amiga.

“Será que aqui pode fumar?” Quem perguntou foi a “auto-proclamada” perua. Eu gelei. Olhei para o lado, angustiada, na esperança de encontrar aquela plaquinha que eu adoro (melhor dizendo: a-d-o-r-o!!!). Achei. “Pode, tenho certeza. Vou pegar o cinzeiro pra você.”

Momento de tensão. Eu me remexi no sofá, incomodada. Minha vontade era de me intrometer na conversa e mostrar o aviso de proibido fumar – havia um ao lado de cada mesa. Mas achei melhor aguardar o desfecho. A amiga solícita logo voltou de mãos vazias. Ufa!

“E aí, amiga? Tá feliz casada? Mulher determinada, você, hein?” – perguntou a amiga que havia desistido de fumar.

Um aparte: as amigas aparentavam não ter sequer 20 anos. Pareciam mesmo duas menininhas de 14 anos brincando de gente grande, com seus vestidinhos pretos, da moda, e bolsas coloridas – de verniz, claro.

A casada, que se declarou felicíssima – “afinal você sabe o tanto que eu gosto dele” – estava, há poucos minutos, reclamando do tratamento recebido do marido. “Eu levanto pra trabalhar e ele fica lá dormindo. Tenho que subir até a Paulista e ainda pegar o metrô. E ele nem pra me levar. Quando eu morava com a minha mãe, ela sempre me fazia isso.”

“E a Alice?” – quis saber a outra, falando um tom mais baixo, como se a tal Alice pudesse estar ali por perto, ouvindo toda a conversa, que até então vinha se desenvolvendo em alto e bom som. Um tanto alto demais para o meu gosto!
“Ah, tipo, ela entra no meu orkut direto. Nóia total!”

Acho que foi nessa hora que o ogro veio à tona, ou melhor, a ogra, no bom estilo “princesa Fiona”. Levantei da mesa com pressa e saí de lá quase correndo. Nóia total mesmo. E tem gente que ainda reclama de envelhecer!

segunda-feira, 5 de novembro de 2007

A lei do empurrão

A idéia não foi minha, mas endossei no ato. Seria mais ou menos assim: “Qualquer cidadão fica autorizado a empurrar o seu próximo sempre que este parar abruptamente em local inadequado”. Restaria instituída, assim, a “lei do empurrão”.

Muito civilizada, ela se aplicaria às situações do cotidiano. No shopping, por exemplo. No final da escada rolante, quando a pessoa à sua frente simplesmente pára, indecisa, sem dar um passo sequer, nem pra frente nem para os lados. Nesses casos, você estaria autorizado a dar um empurrãozinho nela (até porque dois corpos não podem ocupar o mesmo lugar no espaço). Nada violento, claro. Apenas o suficiente para a dita cuja sair da frente e dar passagem. Justo, não?

A regra também valeria para os “transeuntes” da Oscar Freire, por exemplo. Afinal, calçada é calçada, seja ou não chique. Quem quiser parar para olhar vitrine, que pelo menos se aproxime dela. Outra opção é seguir pela calçada andando bem lentamente, virando a cabeça para todos os lados, só pra dar bandeira de que está “só passeando”.

O que não dá é para caminhar normalmente, como se estivesse apenas indo de um lugar para outro, e daí, de repente, estacar no meio da calçada sem sinal ou aviso, pra namorar um casaquinho na vitrine. Pior ainda se estiver puxando um cachorrinho pela coleira. E pior ainda mais se o cachorrinho estiver usando “roupinhas”. Mais uma vez, autoriza-se o empurrão.

E os exemplos se repetem:

1) Pessoa parada na porta de saída do ônibus, mas que não vai descer naquele ponto, nem nos 5 próximos, geralmente, e que, mesmo quando o ônibus pára no ponto e abre a porta, não se move um centímetro para o lado para dar passagem para o coitado que quer descer.

2) Grupo de pessoas que, caminhando lado a lado, a passo de tartaruga – geralmente na ida ou na volta do almoço, porque na saída do trabalho todo mundo anda rapidinho –, bloqueia toda a calçada, impedindo a ultrapassagem de um pedestre apressado – como eu, por exemplo, que ando quase correndo.

3) Pessoa à sua frente numa longa e demorada fila de espera que não se toca que a fila andou e fica ali, parada na sua frente, plantada no chão feito árvore.
Há muitas outras situações em que a lei do empurrão viria bem a calhar, mas acho que, a essa altura, a proposta da lei já ficou clara. De qualquer modo, não pretendo cansar o leitor.

Para não haver confusão, quero deixar bem claro que sou contra a violência. Não estou propondo aqui nenhuma forma de agressão. Trata-se de um simples empurrãozinho. Bem de leve. Só para dar vazão aquela irritação momentânea provocada pela distração alheia.

Nem poderia ser diferente. Afinal – e é bom lembrar –, muitas vezes somos nós que fazemos o papel do “próximo” nessa história. Paramos assim, sem aviso, em qualquer lugar, para atender o celular, para checar se o batom e as chaves da casa estão mesmo dentro da bolsa, para conferir o preço daquela bolsa linda que está na vitrine daquela lojinha nova que abriu ali do lado.

Ta aí a prova de que a lei do empurrão é muito civilizada. Um dia você empurra, no outro, é empurrado.

quinta-feira, 1 de novembro de 2007

Terceiro Mandato

Dizem que o ser humano é um dos únicos animais – se não o único – capaz de aprender com seus próprios erros. Não parece. Mesmo depois de optarmos, no Brasil, pela democracia, e tendo consciência de sua incompatibilidade com a concentração de poder nas mãos de uma só pessoa ou grupo, agora discutimos a possibilidade de modificar a Constituição Federal para permitir um terceiro mandato ao presidente em exercício.

Eu não entendo nada de política, mas convivo com a raça humana há 35 anos. Tempo suficiente para constatar que os riscos e estragos efetivos decorrentes dessa perpetuação do poder são fáceis de identificar e difíceis de conter.

Não acredito que essa continuidade seja benéfica – não importa quem seja o presidente. Acho mais do que saudável o conflito de idéias e posições, ou seja, a existência das tais “vozes dissonantes”. Quando o poder se confunde com a pessoa que o exerce, fica muito difícil determinar seus limites.

O homem sempre se deixou fascinar pelo poder, e isso invariavelmente terminou em desastre. Daí os mecanismos desenvolvidos para impedir essa perpetuação. A proibição da reeleição foi um deles. Mas, embora essa vedação tenha sido adotada por nossa CF, em 1988, acabou sendo derrubada em 1997, por uma emenda constitucional, a 16ª – só para constar, já estamos na EC nº 55.

O argumento, duvidoso, a favor da reeleição era de que o mandato instituído seria muito curto, insuficiente para que o governante implementasse seu programa. Como se o governante trabalhasse sozinho. Como se falássemos do programa de uma só pessoa, e não de um governo. Como se tal continuidade não pudesse – e devesse – ser alcançada pela eleição de um outro candidato que comungasse os mesmos propósitos do governante anterior.

No campo da política, a América Latina vem passando por muitas transformações, como indicam os respectivos perfis e programas políticos dos atuais presidentes do Equador (Rafael Correa), da Bolívia (Evo Morales) e da Venezuela (Hugo Chávez). Também na Argentina a alternância no poder parece comprometida com a recente eleição de Cristina Kirchner (ou “rainha” Cristina, como é chamada) para a presidência, o que mais parece uma reeleição disfarçada do seu marido, Néstor Kirchner, pois há fortes indícios de que ele seguirá no poder.

Recentemente, Chávez, em busca do seu “socialismo do séc. XXI”, conseguiu a aprovação da Assembléia Nacional (sujeita, ainda, a referendo popular) para uma reforma constitucional que lhe permite, entre outras coisas, a possibilidade de reeleições ilimitadas. Quando leio isso, fico feliz por não ser venezuelana. Mas será que o Brasil é tão diferente assim da Venezuela?

Essa história de terceiro mandato me fez pensar. Aqui a gente muda a constituição a toda hora e não consegue garantir um mínimo de educação ao nosso povo – às vezes, nem o acesso a ela. Então, que massa crítica formamos, afinal?

Como diria minha avó, “onde passa boi, passa boiada”. Se essa história de terceiro mandato colar, fico imaginando onde vamos parar.

quarta-feira, 31 de outubro de 2007

Aquecimento global, blockbusters e documentários

Afinal, que história é essa de aquecimento global? Cada vez que leio sobre o assunto fico intrigada. Na semana passada, li no Valor uma matéria intitulada “ONU alerta que crise ambiental já é ameaça à existência humana”. Considerando que a ONU goza de certa credibilidade e que a sobrevivência do homem na Terra é tema que afeta uma “parcela significativa” de pessoas, essa não deveria ser matéria de capa, manchete principal do jornal?

Não era. Ocupava 1/8 da 10ª página do primeiro caderno do jornal, canto inferior direito. Não porque todo mundo saiba que isso não é verdade ou que ninguém acredite nessa possibilidade, mas, simplesmente – pasmem – porque não há novidade nenhuma nessa informação.

Em novo estudo, a ONU alerta para o velho problema da sobrevivência da espécie humana e dos riscos da exploração desenfreada, descontrolada e burra que fazemos do nosso meio ambiente. A matéria cita ainda um relatório “histórico” (“Our Common Future”), divulgado há 20 anos, que já pedia o desenvolvimento sustentável. Ou seja, o assunto é velho mesmo.

Aqui no Brasil, tudo bem. Parece que não levamos nada muito a sério – nem nós mesmos. Muito menos a ciência. A palavra “prevenção” não é muito freqüente em nosso vocabulário. Preferimos a “redenção” da risada, da cachaça e do carnaval. (E isso não é uma crítica, é mais uma constatação.)

Mas e o resto do planeta?

Engraçado é que os filmes-catástrofe fazem sucesso por aí. Ora falta água (Mad Max), ora falta terra (Waterworld), ora metade do globo congela (O Dia Depois de Amanhã), ora um vírus mortal destrói tudo e todos (Os Doze Macacos). E há muitos outros exemplos.

Em todos eles, quase sempre há um mocinho visionário que tenta alertar todo mundo da catástrofe que está por vir, mas nunca é ouvido logo de cara. E nós ficamos torcendo por eles e não entendemos como todo mundo pode ser tão burro de não perceber que eles têm razão.

Qual é o problema então? Será que somos inconseqüentes por natureza? Ou será que simplesmente não sabemos o que fazer? Ou pior, sabemos, mas dá muito trabalho ou exige esforço demais. Melhor sentar e esperar alguém resolver o problema.

Hoje eu tive uma pequena amostra do impacto do aquecimento global na minha vida. O ar condicionado do escritório quebrou. E, em São Paulo, a cidade do concreto, o ar condicionado é tudo. Em dias como hoje, dá pra ver a fumaça subindo do asfalto da avenida paulista. Até o vento é quente. Aliás, não é vento, é bafo. No final do dia, vêm as pancadas de chuva e os alagamentos, pois, com tanto concreto, a água não tem por onde escoar.

Bom, enquanto houver filmes-catástrofe pra gente assistir, acho que tudo estará sob controle. O problema virá quando eles forem substituídos por documentários. Mas acho que eu não estarei aqui para conferir.

terça-feira, 30 de outubro de 2007

Enterro Celestial

Adoro ler. Mas não costumo ter vontade de chorar quando leio um livro. É diferente de um filme. Nos filmes, as imagens já vêm prontas, o diretor controla a duração de cada uma, a passagem de uma para outra, a iluminação da cena, cada gesto, olhar, som. Isso sem falar da trilha musical, que, sozinha, pode nos jogar da euforia à depressão, do riso descontraído à ansiedade.

No texto não. O autor não tem controle das imagens que formamos quando lemos. Ele apenas nos dá indicações, pistas mais ou menos claras. Por mais descritiva que seja a narrativa, cada leitor singular fará sua própria composição. Com ou sem música de fundo.

Por isso acho mais difícil levar o leitor às lágrimas do que o espectador. Causar impacto emocional imediato.

Não me entenda mal. Não acho que os filmes sejam mais ou menos emocionantes que os livros. Não se trata de uma competição. Depende do livro. Depende do leitor. Depende do momento, da ocasião, da temperatura, não importa.

Eu me lembro uma vez, ainda adolescente, quando tentei ler um livro do Stephen King e desisti. Fiquei com medo. E me senti ridícula por isso. O que não aconteceria se fosse um filme de terror.

Por isso me surpreendi com “Enterro Celestial”. Mais de uma vez tive que fazer um intervalo na leitura para não dar muita bandeira. (Uma maluca, com um livro na mão, derramando lágrimas sobre uma xícara de café!)

E não tive que segurar o choro por conta de alguma atrocidade: um espancamento, uma cena de tortura ou abuso sexual, um homicídio. Não. As lágrimas me vieram aos olhos porque uma mulher deu a outra uma perna de carneiro. (Não ria ainda. Leia o livro primeiro. Depois conversamos.)

Xinran, autora chinesa (mais conhecida por “As boas mulheres da China”), narra a história de Wen, também chinesa, que, no final dos anos 50, arrisca-se numa viagem ao Tibet em busca do marido desaparecido. A autora é jornalista, e a história nos é apresentada como sendo baseada no depoimento verídico dessa personagem, Wen.

Embora não se encontre, ao longo do texto, evidência alguma de que isso seja verdade – tanto o depoimento como a veracidade dele – isso pouco importa. A história é pretexto para nos mostrar um pouco do Tibet e da China, mas, principalmente, do embate entre culturas distintas – melhor seria dizer mundos.

Para o leitor brasileiro, é engraçado acompanhar a surpresa de Wen em face aos costumes tibetanos, uma vez que, para nós, os costumes chineses também podem ser bastante surpreendentes.

Estamos tão acostumados a enxergar a vida unicamente do nosso ponto de vista que acabamos ignorando o fato, mais do que óbvio, de que ela pode ser vivida de formas muito diferentes. E, principalmente, de que fazemos nossas escolhas, tendo ou não consciência disso.

“Enterro Celestial” é uma história de amor e tolerância. Comovente. Doce. Interessante. Vale a pena.

Ficha Técnica: “Enterro Celestial”, de Xinran, São Paulo: Companhia das letras, 2004.

segunda-feira, 29 de outubro de 2007

Sarcozy em laços de família

Na semana passada, a França aprovou uma nova lei de imigração. Entre as novidades, a realização de testes de língua e de “valores franceses” – o que será isso? – além de exames de DNA, obrigatórios, para os “candidatos a imigrantes” que desejarem comprovar parentesco com os imigrantes já residentes no país.

Confesso que não simpatizo com Sarcozy desde a época em que ele ainda era ministro do interior e virtual candidato à presidência da França. Sua postura e suas declarações durante a tal da “intifada francesa” ou, melhor dizendo, aquela onda de incêndios a carros e prédios protagonizada por jovens imigrantes, franceses ou não, legalizados ou não, não deixaram espaço para dúvidas: Sarcozy mostrou a que veio.

Mas, se ele foi eleito presidente da França, é sinal que muita gente por lá - pelo menos a gente que vota e que tem peso para decidir uma eleição - concorda com ele.

Ainda assim, e mesmo que Sarcozy fosse uma doce e meiga criatura, não dá para ter muito boa vontade com essa nova lei. Para não subverter demais a ordem (nada) natural das coisas, vamos admitir que cada porção do planeta, a que se convencionou (quem convencionou o quê? eu não assinei nada!) chamar de país, pertença a este ou àquele grupo de pessoas e que estas tenham pleno direito de impedir que outros dele se aproximem (é assim que se fazem, ou pelo menos faziam, as guerras, não?). Sendo assim, pode-se permitir ou proibir a imigração.

Se proibida, tudo bem, não há mais nada a dizer. Mas, se permitida, a questão é saber de que modo se dará essa permissão. Será total ou irrestrita? No caso da França, existem restrições. E o limite delas é que é o problema.

Acredito que haja espaço para muita discussão entre o que seria uma limitação aceitável ou não, mas, no caso da obrigatoriedade do exame de DNA para comprovação de laços de família, só vejo lugar para uma coisa: preconceito.

O critério “sangue” há muito se mostrou insuficiente para definir e identificar uma família – se é que um dia o foi. A natureza da matéria que une as pessoas a ponto de elas se reconhecerem como pai, mãe, filhos, avós e sabe-se lá o que mais pode ser difícil de definir, mas é muito fácil dizer o que não é: pura biologia. Realmente, não sei qual seria a contribuição do exame de DNA nisso tudo.

Ainda assim, essa discussão toda em torno da movimentação de pessoas ao longo do globo – que de forma alguma se restringe a um problema da França – é muito estranha. Uma hora somos compelidos à cidadania global e outra, viramos ferrenhos defensores do nosso quinhão de terra!

sábado, 27 de outubro de 2007

O Rio de Janeiro continua lindo

O governador e o secretário de segurança pública do Estado do Rio de Janeiro causaram alvoroço essa semana. Um ao afirmar que a comoção social provocada por um tiroteio num bairro “chique” seria muito maior do que a resultante de um tiroteio numa favela. ("Um tiro em Copacabana é uma coisa; um tiro na Coréia, um tiro no Complexo do Alemão, é outra"). O outro, ao defender o aborto como meio de combate à violência. (“Você pega o número de filhos por mãe na Lagoa Rodrigo de Freitas, Tijuca, Méier e Copacabana, é padrão sueco. Agora, pega na Rocinha. É padrão Zâmbia, Gabão. Isso é uma fábrica de produzir marginais.”)

Não vou discutir a postura, credibilidade ou responsabilidade de cada um dos personagens citados acima. Também não farei menção à profissão e ao cargo que ocupam, muito menos à imagem que a carreira política goza no Brasil. Não. Pretendo me ater às respectivas declarações.

Quem, em sã consciência, teria o desplante de declarar que, no Brasil, um tiroteio na favela causaria a mesma repercussão que um tiroteio num bairro de classe média ou alta (falando claramente: de “gente rica”)? Se houver alguma dúvida, basta comparar a cobertura dos jornais em um ou outro caso ou consultar as estatísticas de incidentes assim. É fato que tiro em favela é muito mais corriqueiro e dá muito menos ibope do que tiro em bairro de gente rica.

Mas a coisa ainda piora quando se tenta explicar a razão dessa disparidade de tratamento – profundamente injusta – pondo a culpa na polícia ou no governo. Nós, sociedade, somos a polícia e o governo. Nós, sociedade, é que reagimos de forma diferente a situações como essas. Nós, sociedade, damos pesos distintos à vida de gente pobre e à vida de gente rica.

Quem vive na favela convive muito de perto com a violência. A violência combatida pelo Estado somada à violência praticada pelo Estado. A violência institucional. A violência da marginalização. A violência que, de incidente isolado e excepcional, transforma-se em rotina.

Onde ocorrem as chacinas? Se pelo menos uma vez por mês você tropeça num corpo na esquina da sua casa, no final do ano você já tira de letra essa situação. Torna-se parte do seu cotidiano. Como as crianças que vemos no farol ou mendigando nas ruas. Você pode até ficar deprimido, mas não leva nenhuma pra casa.

Quanto à relação entre criminalidade e aborto, não li Freakonomics e não conheço nenhuma pesquisa sobre o tema. Mas acredito que a visão da favela como berço de marginais seja, infelizmente, compartilhada por muita gente. E o aborto, como solução para o problema, surja como uma idéia brilhante, muito melhor do que oferecer educação – aliás, “direito de todos e dever do Estado” (artigo 205 da Constituição Federal brasileira).

Por isso, o que mais me incomodou nisso tudo não foram as afirmações – reprováveis ou não – mas sim a hipocrisia das reações. Enquanto não assumirmos nossos preconceitos e nossa participação na sociedade em que vivemos, não vamos conseguir mudar coisa nenhuma.

O Rio de Janeiro continua lindo, mas a violência por lá, e em muitas outras cidades do Brasil, como São Paulo, há muito extrapolou as piores expectativas – já bastante baixas – dos seus moradores e se prolonga por tempo suficiente para ser chamada de crônica.

Eleger um vilão para essa história – seja o governo, seja a polícia –, sem reconhecer a parte que nos cabe, não me parece de grande ajuda.

sexta-feira, 26 de outubro de 2007

Cinzas do Norte

Já faz algum tempo que queria ler um livro do Milton Hatoum. Ganhei no Natal, porque pedi, mas só li agora. Cinzas do Norte se passa em Manaus e conta a história de duas famílias. Não que isso realmente importe.

O livro é ótimo. Os personagens são humanos, reais, bons e maus ao mesmo tempo. Você oscila a todo instante, ora simpatizando com um, ora com outro. E assim vai, nesse movimento de simpatias e antipatias, até que você acaba torcendo por todo mundo, mesmo sabendo que a história não pode ter um final lá muito feliz, afinal, como eu disse, os personagens são “reais” e, na vida real, não existem finais hollywoodianos.

Quem nos conta a história é Olavo, amigo de Mundo, o personagem central. Portanto, o narrador é também personagem. E personagem bastante tímido, pois pouco nos conta da sua vida, dos seus sentimentos, da sua história. Não se dá a devida importância. Ele é quase ninguém.

Além desse narrador, o autor usa o recurso das cartas para dar voz a um outro personagem, este sim bastante presente em todo o livro: Ranulfo, o tio de Olavo e candidato a pai “ilegítimo” de Mundo.

Manaus, mais do que cenário, é um personagem à parte. Triste e pobre. Sofrido. A decadência da cidade se confunde com a decadência da família de Mundo. Decadência emocional e financeira.

Desde as primeiras páginas, o autor já nos dá o tom trágico da história de Mundo. O permanente conflito entre ele e seu pai, Jano, que parece girar em torno das aspirações artísticas do menino não coincidirem com as ambições do pai. Mas, conhecendo Alícia, mãe de Mundo, dá para desconfiar de muitos outros motivos.

Existe algo de inexorável na história de Mundo. Não importa as inúmeras variações possíveis, não importa as várias versões do destino, a revelação de segredos. Tudo sempre terminaria do mesmo jeito. Para ele, nunca haveria redenção possível na relação pai e filho.

Uma história sem mocinhos ou bandidos. Mas, acima de tudo, uma história bem contada.

Ficha Técnica: “Cinzas do Norte”, de Milton Hatoum, São Paulo: Companhia das Letras, 2005.

quarta-feira, 24 de outubro de 2007

Segundo Piso

Adoro doces, especialmente torta de limão. Acompanhada de café, claro. Preto, forte e amargo. Combinação perfeita.

Uma vez por semana, eu me entrego a esse prazer. Verdadeiro ritual. Misturo o recheio azedo do limão com o marshmellow da cobertura. Guardo um pedacinho da massa para o bocado final, que tem de ser completo: massa, recheio e cobertura.

O Café fica no subsolo do Shopping. Do balcão, vê-se as escadas que levam ao térreo e o próprio piso do térreo.

Estava lá outro dia... Ah, esqueci de dizer que era segunda-feira! Comer torta de limão com café numa segunda-feira, dia mundial do mau-humor, deve significar alguma coisa. Ainda mais porque segunda-feira também é o dia mundial do (começo de) regime. Enfim, uma subversão!

Mas eu estava lá outro dia, concentrada no meu doce, quando chegou uma senhora. Arrumada, sem ser chique. Celular colado ao ouvido. Combinava um local de encontro com alguém.

“Eu estou aqui, naquele Café, aquele...” – parou um instante olhando ao redor, indecisa – “do segundo piso”. Virou-se para a moça atrás do balcão do Café que aguardava o desfecho da conversa para oferecer um cafezinho, quem sabe um doce também, àquela senhora. “Estamos no segundo piso?”, perguntou a mulher em busca de confirmação.

A mocinha titubeou. Mas decidiu-se tão rápido que mal deu pra notar sua hesitação. “É sim, primeiro piso” – disse, levantando a mão até a altura dos olhos e cortando o ar à sua frente quase na mesma linha do chão do piso térreo que ela entrevia dali mesmo, do balcão –, “segundo piso”, concluiu fazendo o mesmo movimento com a mão, mas, dessa vez, na linha da cintura, feliz por poder ajudar.

A essa altura, eu já estava quase me afogando na minha xícara de café, com vontade de rir.

Pensei em esclarecer a confusão. Mas a lógica da mocinha era tão cativante! Depois, sei que tenho o mau hábito de me intrometer na conversa dos outros. Mesmo para ajudar, não deixa de ser um mau hábito.

A moça atrás do balcão parecia feliz por estar ali, naquele lugar bonito, naquele café chique, naquele uniforme. Imaginei que talvez ela não estivesse acostumada com essa parafernália de prédio: 2º subsolo, 1º subsolo, térreo, térreo baixo, térreo alto, mezanino, 1º andar, 2º andar... e outras invencionices.

Como se o mundo dela e o do Shopping fossem dois, distintos. Um contraste enorme. E ela, feliz da vida. Pelo menos naquele instante. Essa tal sociedade que inventamos é tão esquisita!

O Brasil não é a Suíça

“Nenhuma pena passará da pessoa do condenado”. Essa regra está listada entre os direitos e garantias fundamentais na Constituição Federal brasileira.

Parece óbvio. Como punir alguém por um crime que não cometeu? Por mais volátil que seja o conceito de justiça, por mais que ele sofra temperos culturais, simplesmente não parece “justo” que o Estado estenda a punição do criminoso aos seus familiares, inclusive crianças.

Tratar o crime como uma espécie de doença hereditária não parece razoável em pleno século XXI. Lembra da velha metáfora da maçã, aquela que diz não ser preciso mais do que uma única maçã podre para pôr a perder toda a cesta? Pois é, o crime é contagioso. Contamina.

Expulsar estrangeiros condenados por crimes e suas respectivas famílias, criar barreiras mais rígidas à imigração e restringir as formas de aquisição de nacionalidade. Essas são algumas das medidas que o Partido do Povo Suíço (SVP), o grande vencedor das eleições gerais recém-realizadas, promete implementar.
Isso mesmo. Estamos falando da Suíça. Aquela mesma Suíça sempre citada como paradigma da sociedade-padrão civilizada, no melhor sentido da expressão.

Para se ter uma idéia do que vem pela frente, basta lembrar do material utilizado na campanha do SVP – que, a julgar pelo resultado das eleições, parece representar o pensamento de parte significativa da população suíça. O Partido do Povo Suíço distribuiu cartazes onde figuravam três meigas ovelhinhas brancas, com a bandeira da Suíça estampada ao fundo, chutando para fora uma ovelha negra. A frase em destaque: “Para ter segurança”.

Até agora, quando alguém dizia “você pensa que estamos na Suíça?”, era sempre para me lembrar dos problemas estruturais do Brasil, das nossas dificuldades em dar condições de cidadania e respeito ao povo brasileiro.

Se a ameaça do SVP se concretizar, no entanto, da próxima vez que disserem que o Brasil não é a Suíça, vou respirar aliviada: graças a deus!

terça-feira, 23 de outubro de 2007

Um Exocet - Calcinha!

A repressão violenta às manifestações pacíficas dos monges budistas e da sociedade civil, por parte da junta militar que governa Mianmar, causa repulsa no mundo “dito” civilizado. Mas parece que não passa disso.

O governo militar continua firme e forte, desrespeitando direitos fundamentais do homem – entre eles, o “kit básico”: direito à vida, à integridade física e à liberdade de expressão. Fala-se muito. Faz-se muito pouco.

Os manifestantes pedem por democracia (o país vive sob regime militar desde 1962) e por melhores condições de vida. O governo militar responde enviando o exército contra os monges. (Cá pra nós, há poucas imagens tão arraigadamente associadas à não-violência como a de um monge budista.)

Notícias (denúncias) de repressão à liberdade de imprensa, assassinatos, espancamentos e várias outras modalidades de violência arbitrária, desproporcional e – pior de tudo – institucional. Entre os protagonistas, o general Than Shwe, líder do Conselho de Estado para a Paz e o Desenvolvimento que responde pelo governo militar. Paz e Desenvolvimento!

Detalhe: em 1990, a democracia ameaçou retornar ao país. Em eleições livres, a Liga Nacional pela Democracia, chefiada por Aung San Suu Kyi, saiu-se vitoriosa. O governo militar, porém, anulou o processo. Aung San Suu Kyi não conseguiu exercer o mandato recebido e acabou recolhida em prisão domiciliar. Em 1991, a ativista pela democracia recebeu o Prêmio Nobel da Paz.

Não conheço Mianmar. E não acredito que a pouca informação que circula na internet e na mídia em geral seja condizente com a realidade do país, sua cultura, sua história. Mesmo assim, prefiro me arriscar com o que tenho a deixar de me manifestar.
Nesse último final de semana, li no Estadão (de 20 de outubro de 2007, pág. A27) matéria que falava sobre uma campanha contra a repressão batizada de “Calcinhas pela Paz”. Maluquice ou não, é bom saber que alguém está fazendo alguma coisa.

Parece que a iniciativa se apóia numa superstição corrente no país de que o contato com peças íntimas femininas enfraqueceria os homens. Por isso o movimento pede que as mulheres de todo mundo enviem calcinhas para o governo militar de Mianmar.

Fausto Fawcett já vaticinava sobre o potencial beligerante das calcinhas. Quem sabe Kátia Flávia, a Godiva do Irajá, com suas calcinhas Exocet não seja a salvação dos monges budistas? Ela, sozinha, arrasaria todo um quartel.

sábado, 20 de outubro de 2007

A Parturiente

Eu já estava em frente ao caixa quando a moça chegou. Grávida de uns 4 meses. Pelo jeito, era cliente, pois ficou batendo papo com a moça simpática e séria que servia o café. O assunto, claro, era o bebê e o parto. Não me lembro das palavras exatas que a jovem grávida utilizou, mas o fragmento de conversa que eu ouvi foi mais ou menos assim: “Eu ainda tive que ficar uma hora discutindo com o médico. Eu quero cesárea de qualquer jeito. Parto normal, nem pensar. Médico é fogo. A gente é que paga, mas tem que fazer o que eles querem!”.

Sorte que eu já estava na porta, saindo do café, de costas para ela. Assim ela não pôde ver a minha cara. Tive que me segurar para não rir alto. Essa idéia de ir ao médico e se indignar com o fato de ele lhe fazer uma recomendação me pareceu tão engraçada! Se a lógica do “eu pago, eu mando” ou “o cliente sempre tem razão” se aplicasse aos médicos, de que eles serviriam? Para quê ir ao médico?

Não acho que a moça fosse obrigada a optar pelo parto normal, considerando que se tratasse mesmo de uma opção – o que não sei se é verdade para todos os casos. Se existem duas possibilidades de se trazer ao mundo uma criança – pelo parto normal ou pela cesárea –, ela que escolha o meio que mais lhe aprouver. O que me chamou a atenção foi a indignação dela com a postura do médico de recomendar um método, explicando prós e contras. Pior ainda foi a justificativa dessa indignação: era ela quem estava pagando!

Parecia que ela estava comprando um vestido, uma bolsa ou mesmo escolhendo o quarto do bebê. Era ela quem estava pagando, portanto, ela é quem deveria decidir. Nada de palpites ou recomendações. Eu te pago para você fazer o que eu mandar.

Em parte, até entendo a confusão da moça. Algumas clínicas médicas parecem mesmo lojas. E as maternidades, hotéis de luxo. Vende-se terapias, exames, filmagens, fotos. Mas não me entenda mal. Acho ótimo que um hospital, especialmente uma maternidade, seja um lugar bonito e agradável, que faça com que o paciente – eu disse “paciente”, e não “cliente” – sinta-se bem, como se estivesse em casa. O fato é que há muita gente exagerando por aí.

Quanto à gestante em questão, não consegui deixar de pensar no bebê. Criança de sorte, essa que ela está esperando. Vai juntar seu primeiro milhão antes dos dez anos. Já que quem paga manda, o inverso também se aplica: obedece quem recebe. “Filho, te dou dois reais se você largar a chupeta, pago 5 pra você ir à escolinha, 3 pra não morder mais seus amiguinhos...”.

sexta-feira, 19 de outubro de 2007

Genocídio

A palavra é forte. Mais do que violência, ela traduz um desequilíbrio de forças, uma sensação de abuso de poder, de covardia. O grau de reprovação que desperta é ainda maior do que o de uma situação de guerra. Talvez por isso eu tenha ficado tão incomodada com o debate que mais uma vez assolou a imprensa, referente ao genocídio praticado pelos turcos contra os armênios em 1915.

Primeiro li uma pequena nota em que se dizia, com outras e poucas palavras, que o governo turco ameaçava retirar seu apoio aos EUA no Iraque em represália à eventual aprovação de resolução, pelo parlamento americano, declarando o genocídio. Detalhe: o governo turco nega o massacre. Portanto, não seria o caso de ele reprovar a atitude americana utilizando dados, informações, argumentos que demonstrassem que o genocídio, de fato, não aconteceu? Não entendi essa lógica torta: para impedir que se declare caracterizado o genocídio, promete-se “vingança”.

Muitas outras matérias sobre o tema foram publicadas. Discute-se o futuro da parceria entre EUA e Turquia, os reflexos desse incidente na oscilação do preço do petróleo, a situação dos EUA no Iraque com o eventual fim do apoio logístico proporcionado pela Turquia. Tudo, menos o massacre. Ninguém parece interessado em discutir o fato em si – o genocídio.

À primeira vista, a impressão que se tem é de que a tese contrária à caracterização do massacre como genocídio não é “defensável”. Outros países, antes dos EUA, já declararam seu entendimento sobre o assunto, afirmando a tese do genocídio. Mas, em se tratando de política, tudo é possível. Pela rápida e simples leitura das notícias, não dá para saber quais são os interesses realmente envolvidos nessa discussão, ou por que o tema tem alcançado tanto destaque agora, passados mais de 90 anos do fato. Enfim, não saberia dizer quais são as implicações desse imbróglio no cenário internacional.

Para piorar ainda mais a situação, li hoje a seguinte declaração do presidente Bush, com direito a aspas e tudo, em resposta à aprovação, pelo parlamento turco, de uma eventual operação militar em território iraquiano: “Queremos deixar claro à Turquia que, em nossa opinião, não é de seu interesse enviar militares para o Iraque” (Jornal Valor Econômico, de 18 de outubro de 2007, pág. A14).

Não entendi. Por que os EUA vêm a público informar à Turquia o que é, “na sua opinião”, do interesse da Turquia? Não seria ela própria, a Turquia, que estaria em condição de avaliar o que é ou não do seu interesse? Enfim, como no cenário internacional picuinha se chama incidente diplomático, acho que esse poderia ser mais um de uma longa lista.

Turquia, EUA, Iraque... São esses os protagonistas das histórias que têm circulado ultimamente. Mas, e os armênios? Não teriam eles um papel relevante nessa história? Não deveriam se manifestar? Onde estão os armênios? Gostaria de saber por que ninguém fala deles.

quarta-feira, 17 de outubro de 2007

O cachorro

Chegaram em grupo. Uma mulher e dois homens. Um deles falava com sotaque, com certeza era “gringo” – e escrevo gringo sem nenhuma conotação pejorativa, muito pelo contrário! Era ele, o gringo – daqui pra frente sem aspas –, quem narrava o encontro; na verdade, uma viagem romântica com direito à lareira e fondue.

Tudo perfeito, não fosse o cachorro. Não que o gringo fosse um cachorro, claro que não! Não que a namorada do gringo tivesse se envolvido com um cachorro! Não. Pelo menos não com um de duas patas.

O problema era sim o cachorro dela, mas um bichinho de quatro patas mesmo, desses que late e baba por todo canto. O cão ficou em São Paulo enquanto o casal partiu para sua viagem romântica. Hospedado em um hotel. Não o casal – que ficou numa pousadinha – mas o cachorro. Esse sim foi para o hotel.

Parece que lá pelas tantas, no meio do jantar romântico, no restaurante de fondue, em frente à lareira, a namorada do gringo começou a ligar para o hotel do cachorro a cada meia hora só para saber se o bichinho estava bem. Entre uma ligação e outra, a moça retomava a conversa com o gringo, sempre falando do cachorro e de suas preocupações com o bem-estar do cãozinho.

Segundo declarações fidedignas do gringo, não há nada mais “broxante” do que isso.

Resumo da ópera: o fim de semana acabou não sendo tão romântico assim. E o relacionamento terminou. Não sei se por conta da mal-fadada viagem ou se por fatores alheios a ela.

Eu costumo tomar meu café bem devagarinho, aproveitando cada instante. Por isso deu tempo de ouvir a história toda, que nem foi tão longa assim. (Obviamente, eu omiti todos os detalhes que não me interessavam.)

Mas saí de lá pensando no quanto homens e mulheres são diferentes. Eu já fiquei imaginando se a garota não teria usado a história do cachorro para botar o gringo de escanteio, ou se o problema não era falta de assunto e a coitada teve que apelar para o cachorro, ou, ainda, se o cachorro de quatro patas não teria, afinal, só duas mesmo e ela estivesse curtindo a provocação de ligar para o “caso” na frente do “fixo” – puro descaramento!

O gringo, pelo jeito, não pensou em nada disso. Pôs logo a culpa do fracasso da viagem – e, quem sabe, por tabela, do relacionamento – na pobre moça – ou no cachorro, não tenho muita certeza –, e saiu ileso dessa história. Pelo menos perante os amigos. O que prova que algumas características são inatas ao ser humano do sexo masculino, independente de fronteiras. Enfim, é a verdadeira globalização do “eu não tive culpa” ou, em outra versão também muito apreciada: “mulher é mesmo um bicho esquisito”.

terça-feira, 16 de outubro de 2007

A castração química e a lei do talião

Na natureza nada se cria, nada se perde, tudo se transforma, já dizia Lavoisier. Pelo visto, essa máxima também vale para o direito. A bola da vez é a antiga lei do talião - lembra do "olho por olho, dente por dente"? - transmutada na pena da castração química.

O termo é péssimo. Deve ter sido cunhado por alguém contrário à idéia. Dizem que a castração química é uma espécie de tratamento médico recomendado ao paciente, dada à sua evidente agressividade, apenas em último caso, cabendo a ele decidir se deseja receber tal tratamento ou não.

Grosso modo, consiste na aplicação de hormônios femininos em pacientes diagnosticados como portadores de um "distúrbio psiquiátrico" chamado de pedofilia. Esse procedimento leva à diminuição da libido e da agressividade, e a dificuldades de ereção. Tais efeitos, no entanto, desapareceriam com a interrupção do tratamento.

Se isso tudo é ou não verdade, não sei, não sou médica nem especialista no assunto. Também não saberia dizer se isso fere ou não a ética médica. A minha, garanto, restaria incólume.

O problema é a sugestão de que a castração química seja aplicada como punição. Seria o retorno das penas cruéis ou de caráter perpétuo, pelo menos no Brasil. A castração química, para surtir seus efeitos indefinidamente, teria que ser perpétua. Quanto à crueldade, parece óbvio se tratar de uma violenta intervenção contra a integridade física e psicológica da pessoa.

Tudo bem, nossa Constituição Federal não permite tais penas e, portanto, a castração química não poderia ser aplicada no Brasil. Mas isso nunca foi problema por aqui. Nada que uma "emenda constitucional" não resolva.

É claro que a pedofilia é crime e que precisa ser combatida e punida com o maior rigor - assim como o estupro (outro crime para o qual se aventa a possibilidade de punição via castração química).

Mas existem limites. A lógica da lei do talião foi há muito superada. Voltar a ela agora seria um retrocesso. E instituir a castração química como pena levaria a isso. Já pensou se a moda pega? E se, em vez da castração química, passássemos à castração pura e simples? Vontade não falta: quem tem pena de pedófilo e estuprador? Quem se solidarizaria com eles?

Mas o que se pretende proteger é a sociedade. É a essência daquilo que nos torna "humanos", na melhor acepção do termo. Se deixarmos de acreditar em alguns valores, que no mundo atual têm perdido bastante prestígio, como respeito, dignidade, solidariedade, compaixão e a defesa dos tão combalidos, mas sempre combativos, direitos humanos, o que será de nós?

A idéia da castração química como pena, para mim, é absurda. Triste é pensar que pode fazer sucesso por aqui e agradar a muita gente.

Referência: Matéria publicada no jornal “O Estado de S.Paulo”, em 16 de outubro de 2007, págs. C1 e C3.

Café das Cinco

Adoro cafés. O café preto, estrilando de quente, forte e perfumado, e o café-lugar, aconchegante e charmoso, com mesinhas pequenas e cadeiras confortáveis para se sentar e ficar horas lendo um jornal ou um livro, fazendo hora, escrevendo, pensando na vida, fazendo nada.

Estou sempre procurando novos cafés para estrear. Passo no café antes de ir para o trabalho. Passo no café na volta do trabalho. Passo no café para tomar um café a qualquer hora.

Gosto da solidão acompanhada dos cafés. E é lá que vou colhendo minhas histórias. Como essas que compartilho agora com vocês.

São fragmentos da vida alheia que se confundem com a minha e com a vida que eu vejo ao meu redor e reflexões sobre tudo que leio.

Seja bem-vindo ao Café das Cinco!