domingo, 14 de setembro de 2008

A Eternidade e o Desejo

Ouvi Inês Pedrosa pela primeira vez na FLIP deste ano. Gostei e tive vontade de conhecer um pouco do seu trabalho. Comecei por “A Eternidade e o Desejo”.

O livro traz vários excertos dos sermões do Padre Antonio Vieira. São realmente impressionantes. Vale a pena ler e reler alguns desses trechos. E, às vezes, é preciso suspender a leitura do romance por alguns minutos para absorver esse primeiro impacto. Esse é o problema dos bons livros, quando você termina, sua lista de leituras está ainda maior. Preciso ler esses sermões.

Mas, voltando à Pedrosa e ao seu livro, mais uma vez o modo como os autores portugueses lidam com a língua me impressiona. A forma como a palavra sai das mãos de Clara para as de Sebastião e, deste, de volta para ela, é admirável. O modo como os diálogos são desenvolvidos também. Essa é uma marca do livro, a fluidez do texto. Natural, fácil e, ao mesmo tempo, construída com esmero, em detalhes.

Clara é a personagem central da trama. Cega, após levar um tiro, volta à cidade onde perdeu a visão para resgatar a si mesma. Essa cidade é Salvador, na Bahia. É interessante ver, através de Clara, a visão do estrangeiro em relação à Bahia.

Clara é insuportável. Áspera e rude com seu amigo, e insuportavelmente humana. Mas, dos dois, Sebastião é o que mais precisa de ajuda. Clara procura um caminho e tem coragem de seguir as pistas que encontra. Sebastião parece preso, empacado em algum lugar, incapaz de se mover.

E é a mulher quem define o destino de ambos. Não sei se pelo fato de a autora ser mulher ou se pelo fato de ser Inês Pedrosa – pelo pouco que sei e vi dela, estou convencida de que Inês é uma mulher de opinião forte.

A capa é um capítulo à parte. Simplesmente linda. Em primeiro plano, as fitinhas coloridas do senhor do Bonfim, iluminadas de sol. Ao fundo, a imagem desfocada do que parece ser um museu, um dos tantos mencionados ao longo do livro, em tons escuros e sóbrios.

É um livro pequeno e fácil de ler, com muito a acrescentar a quem se empenhe nele.

sexta-feira, 12 de setembro de 2008

Cemitério de Pianos

Neste último sábado, numa sala amarela, ouvi o autor de “Cemitério de Pianos” falar sobre seu livro. Da janela, um ipê carregado de flores amarelas completava o quadro.

José Luís Peixoto é português, tem 34 anos e é fã de heavy-metal, assim como parte da platéia ali reunida. Falou pouco mais de uma hora, num tom de voz manso que sempre me parece um pouco tímido. Falou do seu trabalho e da sua vida espelhada nele.

Cemitério de pianos conta a história de uma família. Três gerações de Franciscos Lázaros que se sucedem e se misturam. Os narradores se alternam a ponto de, muitas vezes, não sabermos mais quem é que nos conta a história.

A repetição dos nomes de uma geração para outra contribui para se criar essa ilusão, assim como o fato das respectivas mulheres não terem nomes próprios. Como se fosse sempre uma mesma história. Como se não fizesse diferença ser avô, pai ou filho.

Em vez de tentar agarrar-se à linha da narração, anotando nomes ou coisa parecida, melhor deixar a história fluir. É preciso confiar no autor e deixar que ele te conduza. Como naqueles desenhos 3D que escondem a verdadeira imagem numa repetição sem sentido de figuras. Você só encontra a imagem real se conseguir relaxar, mudar o foco da visão, aguardar que a figura surja.

O ponto de referência dessas histórias entrelaçadas, das histórias de cada um desses personagens ou, se preferir, desse único personagem, é uma oficina de carpintaria. Mais precisamente, uma sala dentro dessa oficina, um local onde estão empilhados dezenas de pianos em frangalhos, destruídos, irrecuperáveis - o “cemitério de pianos”, que dá título ao livro.

Um galpão empoeirado onde se acumulam carcaças, restos de pianos que nunca mais serão tocados. Pelo menos, não aqueles. Mas daqueles corpos de madeira sem vida sairá a peça que será usada para se fazer música novamente. O germe da música está ali, latente, esperando ser jogado em terreno fértil para germinar.

A música está presente o tempo todo, do piano do título, do som que sai do rádio logo na primeira cena – é a música que nos leva ao primeiro personagem – do cemitério de pianos, na alma de todos os Lázaros. Do que se apaixona pela moça da pensão ao qual é levado por um pianista, do que se apaixona pela própria pianista. Até o modo como amam é o mesmo, como se as cenas se repetissem.

Engraçado que, ao falar de seu livro, Peixoto refira-se à música só ao final, como se esse elemento não fosse assim tão forte. Mesmo durante a maratona, onde quase não ouvimos o som, mas apenas a torrente de palavras que correm na mente do personagem. Nessas passagens, a ausência da música é tão eloqüente quanto sua presença. Lembrando que a relação do autor com a música é muito forte, impossível evitar esse pensamento.

A música está presente no cemitério de pianos, impregnada no ar, transformada em algo concreto e palpável. E a paixão que ela inspira também. O Franciscos não apenas consertam pianos com o quem conserta um banco. Eles trazem a música de volta ao mundo, fazem nascer essa música, são apaixonados por ela. Há uma espécie de veneração a amarrar isso tudo.

E isso é reconhecido pelos personagens. O cemitério é trancado por anos, como que para impedir a música e o amor que vem com ela, indissociável, como se para apagar uma história, uma lembrança, uma dor. Ou será por ciúme? Ou por vingança? E enquanto o cemitério de pianos permanece trancado, a história segue suspensa, a espera. Só volta a fluir quando ele é de novo aberto. Então tudo recomeça. A mesma história uma e outra vez.

Peixoto lembrou das referências bíblicas. De Lázaro, que é ressuscitado por Cristo, como parece ressuscitar em seu filho, e no filho do seu filho e assim eternamente. De Marta e Maria, irmãs de Lázaro. De Simão, pai de Judas e também o leproso. Apontou a Bíblia como sendo forte referência em seu trabalho.

Exposição
Mas o que mais me chamou a atenção ao ouvir o autor neste sábado, e que acabei deixando para mencionar só ao final, foi seu comentário a respeito de uma das cenas do livro, tirada de uma cena real: a espera de um telefonema para comunicar a morte do seu pai. Essa era a pergunta que gostaria de fazer e não fiz. Como se dosa isso, essa exposição, essa relação obra e autor?

Peixoto parece tímido, mas desses tímidos corajosos e bem humorados que não se deixam intimidar com a própria timidez. Como se pode olhar para pessoas desconhecidas e falar sobre a morte do seu pai? Deve ser muito difícil lidar com essa imagem pública, com esse papel de autor. Especialmente quando se escreve.

Eu acredito que seja mais fácil conhecer um autor lendo seu trabalho do que falando com ele, convivendo com ele. Por isso, ainda me assusto com essa perspectiva de exposição, com essa falsa sensação de proximidade, de identificação.

Língua
Gosto do jeito como alguns autores portugueses lidam com a língua. É o caso do Peixoto. Invejo a confiança e a segurança. A proximidade. A intimidade. A liberdade com que subvertem as regras e moldam as palavras, as letras, os pontos e vírgulas. Não consigo evitar a idéia de que, afinal, a língua é deles antes de ser nossa. Nós herdamos. Para eles, é inata. Têm séculos de convívio antes de nós. Isso deve fazer diferença.

Controle
Em determinado momento, alguém fez algum comentário relacionando “Cemitério de Pianos” com outro livro do autor, na verdade, o primeiro a ser publicado, “Nenhum Olhar”. Peixoto fez um comentário ótimo a esse respeito. Lembrou que “Nenhum Olhar” foi escrito numa situação única, impossível de se resgatar ou repetir. O livro foi escrito sem a perspectiva de que seria lido, sem observadores.

Agora escreve sabendo que será lido, observado, comentado, analisado. Nunca mais um escritor num quarto sem janelas.

“Cemitério de Pianos” foi meu primeiro contato com a obra de José Luís Peixoto. Terminei e já li, em seguida, “Nenhum Olhar”. Também descobri que esses são os dois únicos livros dele publicados no Brasil. Uma pena.

José Luís Peixoto escreve prosa como se escrevesse poesia. Conheço pouco do trabalho dele, mas não há como evitar uma espécie de encantamento.

terça-feira, 9 de setembro de 2008

Nenhum Olhar

O que dizer de um lugar em que os casamentos são celebrados pelo diabo? Em que o tempo corre diferente para um único homem, que, embora envelheça, não morre nunca? Em que irmãos siameses permanecem ligados por um só dedo? Em que há prostitutas de olhos vazados e carpinteiros sem perna ou braço?

Resignação e inexorabilidade. Esse é o universo desse livro-fábula, onde, apesar do estranhamento, a vida se revela como sempre, como em qualquer outro lugar, sob um sol inclemente e o olhar manso, de cordeiro, de um pastor. Esse é o universo criado pelo autor para contar sua história.

Você pode se perder entre as referências e simbologias, brincando de adivinhar o que representa o quê. É divertido se enveredar pelas metáforas. Será que a falta dos membros representa uma alma amputada? Será que ausência de olhos representa a incapacidade de chorar ou ver, recurso necessário para suportar um destino inglório? E a resignação de José? E a ausência total de redenção?

Já neste livro, a repetição dos pais nos filhos, que o autor retoma em outros trabalhos, é marcante.

Mas, enquanto ficamos buscando sentido para a história, tentando imaginar como acaba, qual será o seu desfecho, é o próprio sentido da vida que está em jogo. Se é que a vida precisa de sentido.

É um livro duro, permeado por um desespero que eu não sei se é do autor ou meu. A resignação do pastor ao seu destino. O amor seco e gasto dos personagens, como se já tivessem vivido vezes sem fim aquelas mesmas vidas, aquelas mesmas dores.

Nenhum olhar é uma fábula que fala da vida, do amor e da morte. A linguagem é uma espécie de personagem. Tem corpo, textura, vontade. Conduz a história, controla seu ritmo, hipnotiza. Peixoto escreve prosa como quem faz poesia. Não deixa nunca de ser poeta.

O movimento também merece atenção. As cenas são compostas em camadas. Cada personagem faz a sua narrativa e assim compõe-se a cena final. Numa espécie de sedimentação. Como a areia na beira de um rio.

Para variar, fiquei procurando deus, ora no escritor que escreve num quarto sem janelas, ora no homem que parece controlar o tempo.