segunda-feira, 30 de novembro de 2009

Tatuagens de parede

Desencanto

Eu faço versos como quem chora
De desalento... de desencanto...
Fecha meu livro, se por agora
Não tens motivo nenhum de pranto

Meu verso é sangue, volúpia ardente...
Tristeza esparsa... remorsos vãos...
Dói-me nas veias. Amargo e quente,
Cai, gota a gota, do coração

E nestes versos de angústia rouca
Assim dos lábios a vida corre,
Deixando um acre sabor na boca

- Eu faço versos como quem morre.

Manuel Bandeira


Encantamento

há uma palavra mágica que se diz. essa palavra
é sempre diferente. montanha, precipício, brilho.
essa palavra pode ser um olhar. a voz. um olhar.

essa palavra pode ser o espaço de silêncio onde
não se disse uma palavra. Brilho,              , montanha.
essa palavra pode ser uma palavra, qualquer palavra.

há uma palavra mágica que se diz. há um momento.
depois dessa palavra, só depois dessa palavra
pode começar o amor.

José Luís Peixoto

segunda-feira, 16 de novembro de 2009

Aprender a rezar na era da técnica

Há dois tipos de homem sobre a terra: os que atacam e os que se defendem. Lenz Buchmann pertence ao primeiro grupo.

Perícia e habilidade marcam tanto o médico como o político. Assim como um código moral bastante peculiar, aparentemente herdado do pai.

O mundo, sob a ótica do personagem, divide-se entre fortes e fracos. Saúde e doença. Técnica. Natureza. Um mundo violento e agressivo. Como a doença que acomete a sua família. Contra a qual, nem defesa, nem ataque parecem surtir efeito.

“Aprender a rezar na era da técnica” é o último livro da tetralogia O Reino, de Gonçalo M. Tavares. Fazem parte do conjunto: “Um homem: Klaus Klump” (2003), “A máquina de Joseph Walser” (2004) e “Jerusalém” (2006).

O que move o ser humano? O medo ou o desejo. Mas o que subjaz ao movimento? A natureza e a técnica travam seus duelos diários e eternos. Mas não há um equilíbrio de forças. Nunca haverá. A natureza não pode ser sobrepujada. Lenz Buchman domina a técnica e conhece a natureza. Não a subestima. Nem por isso consegue vencê-la.

A narrativa de Gonçalo M. Tavares é fresca e vigorosa. Não são as palavras que se enroscam e enlaçam umas as outras, mas imagens e idéias.

Nesse mundo, criado por Tavares, não há espaço para o amor. Pelo menos, não é ele que sustenta os personagens ou os coloca em movimento. Há desejo, admiração, respeito, desprezo, idolatria, compaixão, gratidão. Senso de dever e de honra. Senso de fatalidade.

A violência sobrepuja tudo e todos. Por isso O Reino é conhecido em Portugal como “os livros pretos” - aliás, a capa da edição portuguesa de “A máquina de Joseph Walser” é preta também, imagino que todos sejam.

Ficha Técnica: “Aprender a rezar na era da técnica”, de Gonçalo M. Tavares, Companhia das Letras (2008)

terça-feira, 3 de novembro de 2009

1

Na verdade, são oito. Oito livros de poesia reunidos num único volume: “Observações”, “Livro dos ossos”, “Atenas e a metafísica”, “Frio no Alaska”, “Homenagem”, “Explicações científicas e outros poemas”, “Autobiografia” e “Livro das investigações claras”.

Chamei de poesia só porque sou obediente e é o que está escrito na capa. É assim que o livro se apresenta. Mas o próprio autor diz não ser dos mais adeptos a classificações. Na verdade, cada vez mais se apregoa a inexistência de gêneros, o que acho ótimo. É bem mais divertido assim.

Os poemas de “1”, ou fragmentos de texto, ora provocam ora perturbam ora encantam. Há momentos embaraçosos nos quais você se vê descoberta em meio àquelas palavras. Como se ali revelassem um segredo só seu. Chega a dar raiva. Sorte que o autor não é meu vizinho.

Mas também há momentos que inspiram reflexão e ternura. Gosto, sobretudo, dos últimos.

Ficha Técnica: “1”, de Gonçalo M. Tavares, Bertrand Brasil (2005)

segunda-feira, 2 de novembro de 2009

Alguns poemas de “1”, de Gonçalo M. Tavares

A Prova na poesia

Queres acreditar?
Nenhuma garantia basta.
Por exemplo: não há narrativas
que levem a prescindir
da proximidade do mar.
O mar é material: exige a tua presença.
Também assim com a poesia.
Como um peregrino:
vai rápido ver o verso.

(Pág. 83)


Vento

O mesmo que empurra o incêndio em direcção ao ser vivo frágil
que perdeu caminho e tempo de fuga,
empurra ainda o cheiro da amante para a casa do amado.
E não se trata de sinalizar o caminho umas vezes à bondade
outras à maldade,
a moral do vento é outra,
e está toda no modo como ele toca na água:
faz o que tem a fazer e parte.

(Pág. 116)


Pág. 197
Irreflectida nunca é a Primavera. A natureza inteira procede como o predador: escondida atrás de algo prepara-se para surgir na hora certa. A Primavera aterra como os aviões acidentados, mas o que resulta não é negro.

Pág. 205
Nem sempre os dias obedecem a fórmulas. Na cidade, com intervalo de meia hora, os melhores dedos contam diamantes e tocam nos seios da mulher que amam. Os ossos são múltiplos e, apesar de escondidos, tornam semelhantes entre si os cidadãos saudáveis. Mas o tráfico mais perseguido em certos edifícios públicos é o dos segredos. O homem rodopia atrás dos acontecimentos e é editado, como um livro, pelo trabalho que aceitou. Atirado és para o mundo pelas ordens a que obedeces.

Poemas extraídos de “1”, de Gonçalo M. Tavares, Editora Bertrand Brasil.