sábado, 29 de agosto de 2009

Meu irmão é filho único / Caos calmo / Em busca da vida

Meu irmão é filho único

Não sei dizer como se formam os laços de família. Talvez com as facas sujas de manteiga que passam de mão em mão em manhãs esquecidas e distantes. Mas sei que se manifestam. Nos momentos mais inesperados. Nas formas mais absurdas. Improváveis.

Risíveis e trágicos.

Laços visíveis e invisíveis.

Impossível romper.

Caos Calmo

Caos e calmaria. Sei que não combinam. Pelo menos, a princípio. Pois, neste filme, ambos se encaixam perfeitamente bem. Após a morte repentina da esposa, um homem se vê ‘sozinho’ com a filha. Como se tivesse sido transportado para um outro universo. Nada mudou ao seu redor. Tudo segue como sempre. Os móveis da casa. O escritório. Os amigos, o irmão. A praça em frente à escola da filha. Ainda assim, um outro mundo.

Simplesmente porque ele escolhe reconhecer a presença de pessoas, objetos, emoções, expectativas, medos, dores, inseguranças, cores que não havia identificado antes, embora já estivessem ali.

Não há elemento novo. Apenas uma supressão.

Um filme delicado.

Em busca da vida

Uma mulher à procura do marido que não dá notícias há 2 anos. Um homem à procura da esposa que fugiu há 16, levando a filha.

Em busca da vida conta a história desses dois personagens e sua procura. O que buscam exatamente? Não sei. Um sentido, explicação, satisfação, acerto de contas, vingança, reencontro, resposta? Ou a vida do título?

Sempre me surpreendo com esses vislumbres da cultura oriental. Eles me fazem lembrar do quanto estamos impregnados da nossa própria cultura. O que chamamos de natureza humana, muitas vezes, é apenas mais uma manifestação cultural.

Amor, honra, bondade, piedade, justiça. O que significam, afinal?

Um filme triste. Mas, disso, eu já sabia.



A cidade das sombras

Mundo paralelo, lado B, planeta bizarro, underground. Não, subterrâneo não. Afinal, eu me refiro ao mundo das sombras. Estamos, portanto, na superfície. E caminhamos debaixo do sol.

Aos nossos pés, elas se espalham. As sombras. As nossas. Olho para a minha. Acorrentada aos saltos dos meus sapatos, parece querer escapar. Não sempre, às vezes.

Não vejo seus olhos. Em que direção seguem? Será que está entretida com alguma outra sombra que cruzou nosso caminho sem que eu tivesse notado? Será que reparou na sombra daquele corpo que, definitivamente, chamou minha atenção?

A verdade é que as sombras têm vida própria. Nós as arrastamos por aí, ao nosso bel-prazer. Mas não as temos sob controle.

sexta-feira, 28 de agosto de 2009

Inveja dos Anjos

A cidade é pequena. Cortada pela linha do trem. As histórias são reais. Ou poderiam ser. Dramas humanos - pequenos e grandes. Corriqueiros. Repetidos. E mais dramáticos por isso.

No final, a culpa é do amor. Como sempre. Sempre isso. Entre pais e filhos. Entre homens e mulheres. Entre amigos. E anjos.

A montagem da peça é ótima. Ajuda a impulsionar a história, ampara os personagens, constrói ilusões, estimula a imaginação. A linha do trem atravessa o palco e corta a cena, literalmente, de cima a baixo.

Suporta o humor duro e cínico de Cecília. A bondade licorosa de Eleazar. A sedução e magia do cafajeste de plantão, Rocco. Um pai e uma filha que se perdem e se encontram ao mesmo tempo.

Onde os anjos entram nisso? Na inveja. Há, nessa história, um homem que tem inveja dos anjos porque queria, ele também, voar invisível pelo mundo tornando a vida das pessoas menos dura. É o carteiro que lê as cartas antes dos seus destinatários e atrasa a entrega das notícias ruins para prepará-los.

Mistura de amargo e doce. Sonho e realidade. Que, ao mesmo tempo que aponta para a dureza da vida, torna mais fácil suportá-la.

Se você não acredita em anjos, devia assistir essa peça.

Ficha técnica: "Inveja dos Anjos". Direção: Paulo de Moraes. Com Marcelo Guerra, Patrícia Selonk, Ricardo Martins, Simone Mazzer e outros. Texto: Maurício Arruda Mendonça e Paulo de Moraes. De 7 a 30 de agosto. Sesc Consolação - Rua Dr. Vila Nova, 245, Consolação, São Paulo.

quinta-feira, 27 de agosto de 2009

Desperdício x Dissipação

Sou contra o desperdício. De tudo. Alimento, recursos naturais, energia, amor, tempo. Perda estéril.

Mas sou a favor da dissipação. Deixar que tudo transborde, transpire pelos poros, expire pela boca num suspiro, pelo nariz, pelos ouvidos, pelos olhos, pelo corpo inteiro.

Sublime e se perca no ar.

E se dissipe em ondas.

Sem objetivo ou razão.

Sem intuito.

Pelo prazer de existir.

Uma ode pela vida que persiste apesar de...

Pela vida.

Quem sabe até onde chegarão?

Coisas do Quiroga

"Como alguém poderia reconhecer o alcance de sua própria coragem andando sempre pelo terreno mais seguro? Seria impossível! A vida oferece situações onde não há segurança a respeito de nada para você reconhecer sua coragem."

(Estadão - 26/08/09)

sexta-feira, 21 de agosto de 2009

A alma imoral

Indicação de uma amiga. O autor do livro é um rabino, Nilton Bonder, que fala sobre... um pouco de tudo. Cabala, filosofia, religião, psicologia. Corpo e alma. Evolução, preservação, transgressão, vida.

Outro dia, numa conversa, alguém disse que eu estava confundindo espiritualidade com religiosidade. O comentário veio a calhar. Tenho certo preconceito com religiões em geral. Com isso, acabei suprimindo coisas demais na minha vida, generalizando. Exagerei no ceticismo. Sufoquei o espírito, com o qual, agora, tento me reconciliar.

Talvez por isso o livro de Bonder tenha me feito bem. Surgiu no momento certo. A ideia de honrar rompimentos, tanto quanto compromissos. O imperativo da mudança e os riscos inerentes a ela.

Para ser sincera, não gosto da forma como o autor escreve. O descuido com a linguagem, muitas vezes, compromete a clareza do texto. E há erros que mesmo uma revisão negligente teria identificado. Isso dificulta um pouco a leitura do livro, o qual, pelos temas que trata e pela abordagem que adota, já não seria, por si só, fácil de compreender.
Ainda assim, despertou em mim uma vontade enorme de conhecer a cabala.

É livro para ser lido aos goles. Colhendo frases de acordo com a necessidade do momento. Sem pressa. Para mim, uma espécie de 'autoajuda espiritual'. (E eu abomino livros de autoajuda.)

Recomendo a leitura!

Ficha técnica: "A alma imoral", de Nilton Bonder, Editora Rocco (1998)

quinta-feira, 20 de agosto de 2009

Algumas frases encontradas em "A alma imoral", de Nilton Bonder

"O ser humano é talvez a maior metáfora da própria evolução, cuja tarefa é transgredir algo estabelecido." - pág. 13.

"Ousaria dizer que tudo que é positivo para a vida é o que não se dissimula." - pág. 22

"Entenda-se por infidelidade tanto o rompimento de compromissos como a manutenção dos mesmos de forma destrutiva." - pág. 35

"Deixar sua cultura e seu passado em nome de um futuro é saber recompor a tensão entre corpo e alma, aprendendo a romper por conta das demandas do futuro e não só pelas demandas do passado." - pág. 38

"A proposta da imutabilidade é mais do que indecorosa: ela violenta um indivíduo. Ela propõe que continuemos a fazer o que foi feito no passado." - pág. 39

"E quantos de nossos esforços e sacrifícios são, na verdade, 'oferendas' ao nada?" - pág. 58

"Quantas pessoas poderíamos ter tirado 'para dançar' na vida e não o fizemos por ofertar sacrifícios ao nada? Sacrifício ao deus da timidez, ao deus da vergonha, ao deus do medo de ser rechaçado e assim por diante." - pág. 59

"Aquele que engana a si mesmo é mais perverso do que o que engana os outros." - pág. 60

"Existe em nós uma tendência de querer agradar a nós, aos outros e à moral de nossa cultura. Com isso vamos gradativamente nos perdendo de nós mesmos." - pág. 64

"Aqueles que se permitem transgressões da alma com certeza são vistos e recebidos pelos outros como estrangeiros. Os que mudam de emprego radicalmente, os que refazem relações amorosas, os que abandonam vícios, os que perdem medos, o que se libertam e os que rompem experimentam a solidão que só pode ser quebrada por outro que conheça essas experiências. A natureza da experiência pode ser totalmente distinta, mas eles se tornarão parceiros enquanto 'forasteiros'." - pág. 66

"Achar-se - e o ancião tentar revelar este segredo ao jovem - é construir identidades e desfazer-se delas." - pág. 69

"O que ainda não é, só se faz sob o sol quando abrimos mão da obediência. Não a obediência em relação ao outro, mas a que impomos a nós mesmos ou a de outros que introjetamos como se fosse nossa." - pág. 70

"Se em teoria o 'caminho do meio' nos parece mais equilibrado e maduro, em termos da alma o rabino de Kotzk tem razão - qual é o ser humano que, profundamente mobilizado por uma intenção e sedento pelo sagrado, pode deixar de ser passional e extremista? Como estar apaixonado e ser moderado? O 'caminho do cavalo' representaria a postura daquele que teme a experiência radical de romper com o padrão e a expectativa da maioria." - pág. 75

"A vida saberá nos julgar não apenas pelas 'perversidades' que acreditamos poder evitar, mas também pelas 'tolices' que nos permitimos." - pág. 77

"Quando uma pessoa deixa de ficar satisfeita com seu negócio ou com sua profissão, é certamente um sinal de que não o está conduzindo honestamente. (New.Antho. 194)." - pag. 79

"O rabi Bunan (Buber, Late Masters, p. 257) adverte que os 'pecados' que um indivíduo comete não são o pior crime realizado por ele. O verdadeiro crime do ser humano é que ele pode dar-se 'uma simples volta' a qualquer momento, mas não o faz." - pág. 81

"Aquele que não faz uso de todo o potencial de sua vida, de alguma maneira diminui o potencial de todos os demais. Se fôssemos todos mais corajosos e temêssemos menos a possibilidade de sermos perversos, este seria um mundo de menos interdições desnecessárias e de melhor qualidade." - pág. 82

"O inconformismo das pessoas diante dos que estão em processo de rompimento com conceitos e propostas do passado tambem decorre do medo e desconforto profundos produzidos pela identificação com essa postura." - pág. 112

"Será um mundo de traidores que não serão crucificados. Será um mundo que descobrirá que quem crucifica não são os outros, mas nós mesmos." - pág. 117

"Ainda cometeremos muitas crucificações, mas a derradeira, a que realmente está em jogo, é a nossa. Se não encontrarmos alguma forma de paz formada de tensão entre nosso corpo e nossa alma, entre nossa moral animal e nossa imoralidade, estamos ameaçados de não redimirmos nossa espécie." - pág. 118

"As roupas que vestem de moral as intenções humanas nos tornam prisioneiros de uma realidade que nos poda, nos restringe e ameaça nossa sobrevivência. Poder enxergar-se nu, no entanto, é uma traição ao animal consceinte difícil de se bancar." - pág. 122

"A resolução do conflito está em seu reconhecimento e no estabelecimento de relações entre homens e mulheres que aceitem essas tensões como inerentes à própria vida. O mundo ideal do futuro será um mundo também de tensões, mas estas não serão projetadas sobre o outro." - pág. 128

quarta-feira, 19 de agosto de 2009

Eu receberia as piores notícias dos seus lindos lábios

Um thriller. Uma história de ação. Romance e suspense. Texto ágil, que escorrega garganta a dentro. Fácil de ler. Rápido.

O controle do tempo, a costura das histórias, a condução das narrativas são excepcionais. O autor, obviamente, tem experiência, sabe o que faz. Para o leitor, é tudo muito fácil. Basta se deixar levar, sem que, para isso, seja necessário grandes esforços.

Imagino um filme. O livro poderia ser um roteiro de cinema, com os diversos planos e cortes abruptos se alternando. Imagino Lavínia. Mais Lavínia do que Cauby. Lavínia é um personagem de verdade. Já Cauby soa como um embuste. A começar pelo nome.

Embora seja ele o narrador e, ao lado de Lavínia, um dos personagens centrais da trama, Cauby não parece real. Parece um pretexto para que a história ganhe vida e possa ser contada.

O que fica depois da leitura? Não sei. Mas é diversão garantida. E de boa qualidade.

Ficha técnica: “Eu receberia as piores notícias dos seus lindos lábios”, de Marçal Aquino, Companhia das Letras (2005).


segunda-feira, 17 de agosto de 2009

Que vontade de fumar!

Hoje entendi porque as pessoas fumam. Há algumas situações em que fumar é a única atitude possível. Como agora, encostada neste balcão, em plena segunda-feira de manhã - dia de rodízio - esperando o Universo. Mas tudo começou horas antes, ainda na garagem da minha casa, quando meu carro - novo e pouquíssimo rodado - resolveu não funcionar.

A assistência técnica do seguro, pelo menos, agiu rápido. Chegou em 15 minutos. Mas o veredicto não foi bom: "isso não é problema de bateria, não, moça; deve ser injeção eletrônica". Chegou rápido, me chamou de moça e, apesar de tudo, fez meu carro voltar a rodar. Foi um bom começo.

De lá me abalei até a concessionária mais próxima. E é onde estou agora. Universo. Nome engraçado. Não sei se um bom ou mau presságio. Mas estou aqui, aguardando uma resposta do Universo.

Logo depois de ter comprado o carro, descobri que não preciso dele. Ele, então, ressentido, vive aprontando comigo. Não, não é verdade. Ele até que é comportado. Eu é que não tenho paciência para carros. Só prejuízo.

A verdade é não estou muito otimista. E não há nada que eu possa fazer. Além de fumar, claro.

Ah, queria tanto um cigarro...

segunda-feira, 10 de agosto de 2009

Terra e Cinzas

Gente de verdade. Pensei nisso lendo o conto de Rahimi. Uma família representada por neto, pai e filho. Como cenário, o Afeganistão. Que mundo é esse? Não faço idéia. Só tenho certeza de que as informações que nos chegam são falsas e truncadas. O Afeganistão que vejo hoje é similar ao Brasil de Carmem Miranda, onde as mulheres andam com cachos de bananas na cabeça, é carnaval todos os dias e os macaquinhos andam soltos pelas ruas, pulando nos galhos das árvores.

Tento juntar peças desse quebra-cabeças. As notícias de jornal, os best-sellers, os filmes. Uma entrevista aqui, outra ali. É nesse ponto que entra Atiq Rahimi. Primeiro eu o ouvi falar - na Flip e no café da Martins Fontes, durante evento organizado pelo Cronópios. Agora, estou lendo alguns dos seus textos. O próximo passo será assistir aos filmes, pois, além de escritor, ele também é cineasta.

Em mais um dos tantos episódios de violência que parecem fazer parte do cotidiano de alguns reinos muito distantes do brasileiro, um vilarejo é aniquilado. Lemos isso com freqüência nos jornais. (Tropas americanas, talibãs, guerrilheiros, facções, ONU, não importa.) Mas, desta vez, ficamos sabendo dos fatos por uma pessoa comum. Um homem que teve sua família dizimada nesse ato e que abandona sua casa destruída puxando pela mão o neto, que ficou surdo com o ataque.

Arrasta a criança em direção à mina onde trabalha seu filho. Os três são os únicos remanescentes dessa família. O homem vai dar a notícia ao filho da morte de todos os seus parentes: a mulher grávida, a mãe, o irmão. Tios, primos, vizinhos, amigos.

A voz do narrador se dirige unicamente ao velho. Talvez seja sua própria voz falando com ele. Uma espécie de grilo falante que tenta mantê-lo vivo, mantê-lo em pé. E assim a história se constrói ou revela, não sei.

Mas, se o Afeganistão é um mundo à parte, os homens são os mesmos em todo lugar. Amor, honra, coragem, instinto de sobrevivência. O egocentrismo da criança que, ao deixar de ouvir, imagina que a voz dos outros é que foi roubada. É o mundo externo a ele que perde algo preciso. O pai que sofre a sua dor, a dor do neto e a dor do filho. E que se agarra a esse filho, ao orgulho que tem dele, para seguir. E que teme pela vida do filho, o filho que tem sangue quente, que não suportará qualquer desonra. Que morrerá para honrar seus mortos.

Esse mesmo pai, que deseja preservar e poupar o filho, ao mesmo tempo precisa que esse filho se lance contra o fogo para honrar seus mortos. Parece exigir que esse filho abra mão de uma vida melhor, de uma oportunidade apenas vislumbrada, para morrer em nome sabe-se lá do que exatamente.

Valores, religião, honra, códigos. Amor, vida e morte. De que matéria somos feitos afinal? Algozes e vítimas de nós mesmos.

E como é possível vivermos vidas tão diferentes numa mesma época, num mesmo planeta, respirando o mesmo ar, debaixo de um único céu? Penso naqueles filmes de ficção científica, nos portais para outras dimensões, nos universos paralelos. Alguém ainda duvida que eles existam?

O livro é ótimo. Vale a pena ler.

Ficha técnica: “Terra e Cinzas”,de Atiq Rahimi, Editora Estação Liberdade

segunda-feira, 3 de agosto de 2009

Budapeste

Sinceramente, não sei dizer se gostei ou não do livro. A leitura é fácil e rápida. Talvez, rápida demais. Às vezes tenho a impressão de que não tive tempo suficiente para compreender os personagens. Enxergo apenas esboços.

Gosto do humor do autor, incrustado no absurdo. Uma mistura de ironia e nonsense. E boa dose de cinismo.

José Costa é uma não-pessoa, uma espécie de lugar comum. Um nome que se repete à exaustão. Um rosto que se confunde. Sua história se resume a criar histórias alheias. Seu orgulho vem do anonimato, assim como a vaidade. Uma vez criadas, suas historias são absorvidas pelos falsos protagonistas e se tornam verdadeiras. Perdem a filiação.

E a história de José Costa? Parece ser a que menos interessa a ele. No final, a reviravolta. Ele próprio ganha uma história alheio e se torna apenas um reles protagonista. Assim perde, num só golpe, tudo aquilo que amealhou pela vida.

Divertido traçar paralelos entre personagem e autor. Pensar que Chico Buarque, como toda pessoa pública, também tem uma vida dupla. Uma só? Quantas mais? Qual será a real? Será que isso existe? Deve ser fácil confundi-las. Mais fácil ainda confundir-se.

Ficha Técnica: “Budapeste”, de Chico Buarque, Editora Companhia das Letras.

Perspectiva

Nada como um pouco de perspectiva para alcançar a paz de espírito. Pôr cada coisa em seu lugar. Lembrar o que importa e deve ser preservado. Lembrar o que é passageiro e circunstancial e deve ser realizado sem grande sofrimento. Desincumbir-se de uma tarefa aborrecida, mas necessária para se alcançar um fim. Lembrar o que fica e o que passa.

sábado, 1 de agosto de 2009

Os cus de Judas

Como sempre, é difícil mergulhar na narrativa de Lobo Antunes. Sempre me enrosco nas palavras que se enovelam e me confundem. Fico tensa, nervosa. Mas sigo adiante. Logo passa e, enfim, paro de resistir e me deixo levar por ele.

Uma história triste, violenta, dura. Sobretudo real. Não que a guerra pela libertação de Angola tenha sido assim. Não que se trate de um registro fidedigno da história de uma nação. Não é dessa realidade que falo. É da realidade humana.

Os dramas, as tragédias, as atrocidades são todos tratados num mesmo tom. Incorporam-se ao dia a dia da tropa. Como acordar e tomar café. Banal. Trivial. A força da narrativa de Lobo Antunes provoca impacto. Endurece e enternece ao mesmo tempo. A história é narrada numa noite, num encontro casual com uma mulher qualquer, num bar qualquer, vivendo uma vida qualquer. E o leitor segue de Angola a Lisboa e vice-versa sem se dar conta.

O nonsense da guerra contraposto ao dilaceramento daqueles que tomam parte nela, direta ou indiretamente. O absurdo, a impotência. A desimportância das dores, do sangue, da devastação.

Uma guerra esquecida ou, como quer o narrador, inexistente. “Tudo é real menos a guerra que não existiu nunca: jamais houve colónias, nem fascismo, nem Salazar, nem Tarrafal, nem Pide, nem revolução, jamais houve, compreende, nada, os calendários deste país imobilizaram-se há tanto tempo que nos esquecemos deles, marços e abris sem significado apodrecem em folhas de papel pelas paredes, com os domingos a vermelho à esquerda numa coluna inútil, Luanda é uma cidade inventada de que me despeço, e, na Mutamba, pessoas inventadas tomam autocarros inventados para locais inventados, onde o MPLA subtilmente insinua comissários políticos inventados.......” (págs. 193/194). E a certeza que fica é de nada mais existir além dela, da guerra. O narrador está lá, preso, encurralado, sem escapatória.

Este é o segundo livro de Lobo Antunes que leio. O primeiro foi “Memória de Elefante”. Ambos perturbadores, com certeza. Ainda mais por saber que, apesar de ficcional, o autor serviu ao exército português em Angola.

Ficha Técnica: “Os cus de Judas”, de António Lobo Antunes, Editora Alfaguara, 2ª ed., Rio de Janeiro: Objetiva, 2007.