Gente de verdade. Pensei nisso lendo o conto de Rahimi. Uma família representada por neto, pai e filho. Como cenário, o Afeganistão. Que mundo é esse? Não faço idéia. Só tenho certeza de que as informações que nos chegam são falsas e truncadas. O Afeganistão que vejo hoje é similar ao Brasil de Carmem Miranda, onde as mulheres andam com cachos de bananas na cabeça, é carnaval todos os dias e os macaquinhos andam soltos pelas ruas, pulando nos galhos das árvores.
Tento juntar peças desse quebra-cabeças. As notícias de jornal, os best-sellers, os filmes. Uma entrevista aqui, outra ali. É nesse ponto que entra Atiq Rahimi. Primeiro eu o ouvi falar - na Flip e no café da Martins Fontes, durante evento organizado pelo Cronópios. Agora, estou lendo alguns dos seus textos. O próximo passo será assistir aos filmes, pois, além de escritor, ele também é cineasta.
Em mais um dos tantos episódios de violência que parecem fazer parte do cotidiano de alguns reinos muito distantes do brasileiro, um vilarejo é aniquilado. Lemos isso com freqüência nos jornais. (Tropas americanas, talibãs, guerrilheiros, facções, ONU, não importa.) Mas, desta vez, ficamos sabendo dos fatos por uma pessoa comum. Um homem que teve sua família dizimada nesse ato e que abandona sua casa destruída puxando pela mão o neto, que ficou surdo com o ataque.
Arrasta a criança em direção à mina onde trabalha seu filho. Os três são os únicos remanescentes dessa família. O homem vai dar a notícia ao filho da morte de todos os seus parentes: a mulher grávida, a mãe, o irmão. Tios, primos, vizinhos, amigos.
A voz do narrador se dirige unicamente ao velho. Talvez seja sua própria voz falando com ele. Uma espécie de grilo falante que tenta mantê-lo vivo, mantê-lo em pé. E assim a história se constrói ou revela, não sei.
Mas, se o Afeganistão é um mundo à parte, os homens são os mesmos em todo lugar. Amor, honra, coragem, instinto de sobrevivência. O egocentrismo da criança que, ao deixar de ouvir, imagina que a voz dos outros é que foi roubada. É o mundo externo a ele que perde algo preciso. O pai que sofre a sua dor, a dor do neto e a dor do filho. E que se agarra a esse filho, ao orgulho que tem dele, para seguir. E que teme pela vida do filho, o filho que tem sangue quente, que não suportará qualquer desonra. Que morrerá para honrar seus mortos.
Esse mesmo pai, que deseja preservar e poupar o filho, ao mesmo tempo precisa que esse filho se lance contra o fogo para honrar seus mortos. Parece exigir que esse filho abra mão de uma vida melhor, de uma oportunidade apenas vislumbrada, para morrer em nome sabe-se lá do que exatamente.
Valores, religião, honra, códigos. Amor, vida e morte. De que matéria somos feitos afinal? Algozes e vítimas de nós mesmos.
E como é possível vivermos vidas tão diferentes numa mesma época, num mesmo planeta, respirando o mesmo ar, debaixo de um único céu? Penso naqueles filmes de ficção científica, nos portais para outras dimensões, nos universos paralelos. Alguém ainda duvida que eles existam?
O livro é ótimo. Vale a pena ler.
Ficha técnica: “Terra e Cinzas”,de Atiq Rahimi, Editora Estação Liberdade
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Um comentário:
Muito boa a resenha. Acabei de ler o livro. Acabei nesse momento. Sua resenha diz tudo!
Rafael Telles
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