quinta-feira, 30 de julho de 2009

Alguns trechos de “Os cus de Judas”, de Lobo Antunes

Sarcasmo
“(...) casado com uma espécie de botija de gazcidla enfeitada de colares estridentes, sempre a queixar-se aos oficiais dos beliscões com que os soldados lhe homenageavam as nádegas atlânticas, difíceis, aliás, de discernir numa mulher aparentada a um imenso glúteo rolante em que mesmo as bochechas possuíam qualquer coisa de anal e o nariz se aparentava a inchaço incómodo de hemorróida (...)” – págs. 38/39

Desalento
“Já reparou que a esta hora da noite e a este nível do álcool o corpo se começa a emancipar de nós, a recusar-se a acender o cigarro, a segurar o copo numa incerteza tacteante, a vaguear dentro da roupa oscilações de gelatina? O encanto dos bares, não é, consiste em, a partir das duas da manhã, não ser a alma a libertar-se do seu invólucro terrestre e a seguir verticalmente para o céu no esvoaçar místico de cortinas brancas das mortes do missal, mas a carne que se livra, um pouco espantada, do espírito, e inicia uma dança pastosa de estátua de cera que se funde até terminar nas lágrimas de remorso da aurora, quando a primeira luz oblíqua nos revela, com implacabilidade radioscópica, o triste esqueleto da solidão sem remédio. (...)” – pág.43

Crítica
“... Mostrem resultados que se vejam discursava o coronel e nós só tínhamos para exibir pernas amputadas caixões hepatites paludismos defuntos viaturas transformadas em harmónios de destroços, o general perorou do Luso As Berliets são ouro piquem o trajecto inteiro de modo que três homens de cada lado exploravam a areia adiante dos carros porque uma camioneta era mais necessária e mais cara do que um homem um filho faz-se em cinco minutos e de graça não é verdade uma viatura demora semanas ou meses a atarraxar parafusos, aliás havia ainda montes de gente no país para mandar de barco para Angola mesmo descontando os filhos das pessoas importantes e os protegidos pelas amantes das pessoas importantes que não viriam nunca o paneleiro do rebento de um ministro foi declarado psicologicamente incompatível com o Exército, ...” – págs. 102/103

Ironia
“... O que seria de nós, não é, se fôssemos de facto felizes? Já imaginou como isso nos deixaria perplexos, desarmados, mirando ansiosamente em volta em busca de uma desgraça reconfortadora, como as crianças procuram os sorrisos da família numa festa de colégio? Viu por acaso como nos assustamos se alguém, genuinamente, sem segundos pensamentos, se nos entrega, como não suportamos um afecto sincero, incondicional, sem exigência de troca?” – pág. 137

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