Espere uma lufada de vento. Quando ele chegar, feche os olhos. Sinta no rosto os grãos de areia. No alto da cabeça, a ardência do sol. Apure os ouvidos e ouça as vozes. E os berros. E os lamentos. E os uivos. E os gemidos. E procure. Procure sem cessar. Até ouvir uma voz. Voz de mulher. Que dança ao sabor do vento, revoluteia no ar, ágil, rápida. Que soluça e ri e ama e sofre e ameaça e ataca e recua. Não há como errar. É essa mesma. A voz dela. Dentre todas as vozes do deserto, você encontrou Scherezade.
Ouvi muitas histórias de Scherezade. Mais ainda, as histórias que Scherezade contava. Ali Babá, Aladim, Simbad. Mas foi ao ler o livro de Nélida que me dei conta de não saber o destino da mais famosa contadora de histórias do mundo.
Acho que isso significa que Scherezade era mesmo uma boa narradora. Justa, essa homenagem a ela. Ainda mais em forma de livro.
“Vozes do Deserto” narra a história de Scherezade, a jovem esposa que, para escapar da morte, enredava o califa em suas histórias, noite após noite, conquistando mais um dia de vida em troca da promessa do desenlace de uma nova aventura – quem não se lembra de “As mil e uma noites”?
A arte de narrar é o que sustenta toda a história. A tensão entre os personagens. As três mulheres isoladas no palácio. O Vizir. O Califa. E Fátima pairando sobre todos. A narrativa como vício e salvação. Como forma de viver o mundo. Como uma forma de vida.
Engraçado ter escolhido exatamente este livro pra ler, entre tantas possibilidades oferecidas pela autora. É o meu segundo livro dela. O primeiro foi “Coração andarilho”, autobiográfico. Há muitos pontos de contato entre eles, como não poderia deixar de ser.
Nélida, como Scherezade, é uma contadora de histórias. Cria suas narrativas em papel. Inventa personagens, envolve-os em sua trama, traça destinos. Seduz o leitor para que ele a acompanhe, prenda-se a ela. Sussurra em seu ouvido. Grita para ser ouvida no meio de uma tempestade. Cala-se até que ele implore para ouvir novamente sua voz.
O que move Nélida? O que ganha em troca de suas histórias? A favor de quem ou do quê exercita sua arte? Por que insiste e persiste na escritura? Para escapar da morte. Provavelmente.
Ficha Técnica: “Vozes do Deserto”, Nélida Piñon, Ed. Record, 2004.
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2 comentários:
Cara... Vc tá ficando cada vez melhor nas suas resenhas. Quase sempre dá vontade de sair correndo e comprar o livro. Será que não dá pra ganhar dinheiro com isso???
Obrigada, Sra. Capivara. Fiquei muito feliz com o seu comentário!
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