O governador e o secretário de segurança pública do Estado do Rio de Janeiro causaram alvoroço essa semana. Um ao afirmar que a comoção social provocada por um tiroteio num bairro “chique” seria muito maior do que a resultante de um tiroteio numa favela. ("Um tiro em Copacabana é uma coisa; um tiro na Coréia, um tiro no Complexo do Alemão, é outra"). O outro, ao defender o aborto como meio de combate à violência. (“Você pega o número de filhos por mãe na Lagoa Rodrigo de Freitas, Tijuca, Méier e Copacabana, é padrão sueco. Agora, pega na Rocinha. É padrão Zâmbia, Gabão. Isso é uma fábrica de produzir marginais.”)
Não vou discutir a postura, credibilidade ou responsabilidade de cada um dos personagens citados acima. Também não farei menção à profissão e ao cargo que ocupam, muito menos à imagem que a carreira política goza no Brasil. Não. Pretendo me ater às respectivas declarações.
Quem, em sã consciência, teria o desplante de declarar que, no Brasil, um tiroteio na favela causaria a mesma repercussão que um tiroteio num bairro de classe média ou alta (falando claramente: de “gente rica”)? Se houver alguma dúvida, basta comparar a cobertura dos jornais em um ou outro caso ou consultar as estatísticas de incidentes assim. É fato que tiro em favela é muito mais corriqueiro e dá muito menos ibope do que tiro em bairro de gente rica.
Mas a coisa ainda piora quando se tenta explicar a razão dessa disparidade de tratamento – profundamente injusta – pondo a culpa na polícia ou no governo. Nós, sociedade, somos a polícia e o governo. Nós, sociedade, é que reagimos de forma diferente a situações como essas. Nós, sociedade, damos pesos distintos à vida de gente pobre e à vida de gente rica.
Quem vive na favela convive muito de perto com a violência. A violência combatida pelo Estado somada à violência praticada pelo Estado. A violência institucional. A violência da marginalização. A violência que, de incidente isolado e excepcional, transforma-se em rotina.
Onde ocorrem as chacinas? Se pelo menos uma vez por mês você tropeça num corpo na esquina da sua casa, no final do ano você já tira de letra essa situação. Torna-se parte do seu cotidiano. Como as crianças que vemos no farol ou mendigando nas ruas. Você pode até ficar deprimido, mas não leva nenhuma pra casa.
Quanto à relação entre criminalidade e aborto, não li Freakonomics e não conheço nenhuma pesquisa sobre o tema. Mas acredito que a visão da favela como berço de marginais seja, infelizmente, compartilhada por muita gente. E o aborto, como solução para o problema, surja como uma idéia brilhante, muito melhor do que oferecer educação – aliás, “direito de todos e dever do Estado” (artigo 205 da Constituição Federal brasileira).
Por isso, o que mais me incomodou nisso tudo não foram as afirmações – reprováveis ou não – mas sim a hipocrisia das reações. Enquanto não assumirmos nossos preconceitos e nossa participação na sociedade em que vivemos, não vamos conseguir mudar coisa nenhuma.
O Rio de Janeiro continua lindo, mas a violência por lá, e em muitas outras cidades do Brasil, como São Paulo, há muito extrapolou as piores expectativas – já bastante baixas – dos seus moradores e se prolonga por tempo suficiente para ser chamada de crônica.
Eleger um vilão para essa história – seja o governo, seja a polícia –, sem reconhecer a parte que nos cabe, não me parece de grande ajuda.
sábado, 27 de outubro de 2007
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2 comentários:
Sissa!
FANTÁSTICO!!!!
Muito bom...adorei!
Beijos
Si,
de uns meses para cá, algums pessoas estão se sentindo à vontade para fazer os comentários mais absurdos e perversos sobre a miséria, o que não significa que assumam seus preconceitos.
Nada pode ser pior do que os autodenominados cidadãos de bem...
Beijo
Gabi
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