Neste último sábado, numa sala amarela, ouvi o autor de “Cemitério de Pianos” falar sobre seu livro. Da janela, um ipê carregado de flores amarelas completava o quadro.
José Luís Peixoto é português, tem 34 anos e é fã de heavy-metal, assim como parte da platéia ali reunida. Falou pouco mais de uma hora, num tom de voz manso que sempre me parece um pouco tímido. Falou do seu trabalho e da sua vida espelhada nele.
Cemitério de pianos conta a história de uma família. Três gerações de Franciscos Lázaros que se sucedem e se misturam. Os narradores se alternam a ponto de, muitas vezes, não sabermos mais quem é que nos conta a história.
A repetição dos nomes de uma geração para outra contribui para se criar essa ilusão, assim como o fato das respectivas mulheres não terem nomes próprios. Como se fosse sempre uma mesma história. Como se não fizesse diferença ser avô, pai ou filho.
Em vez de tentar agarrar-se à linha da narração, anotando nomes ou coisa parecida, melhor deixar a história fluir. É preciso confiar no autor e deixar que ele te conduza. Como naqueles desenhos 3D que escondem a verdadeira imagem numa repetição sem sentido de figuras. Você só encontra a imagem real se conseguir relaxar, mudar o foco da visão, aguardar que a figura surja.
O ponto de referência dessas histórias entrelaçadas, das histórias de cada um desses personagens ou, se preferir, desse único personagem, é uma oficina de carpintaria. Mais precisamente, uma sala dentro dessa oficina, um local onde estão empilhados dezenas de pianos em frangalhos, destruídos, irrecuperáveis - o “cemitério de pianos”, que dá título ao livro.
Um galpão empoeirado onde se acumulam carcaças, restos de pianos que nunca mais serão tocados. Pelo menos, não aqueles. Mas daqueles corpos de madeira sem vida sairá a peça que será usada para se fazer música novamente. O germe da música está ali, latente, esperando ser jogado em terreno fértil para germinar.
A música está presente o tempo todo, do piano do título, do som que sai do rádio logo na primeira cena – é a música que nos leva ao primeiro personagem – do cemitério de pianos, na alma de todos os Lázaros. Do que se apaixona pela moça da pensão ao qual é levado por um pianista, do que se apaixona pela própria pianista. Até o modo como amam é o mesmo, como se as cenas se repetissem.
Engraçado que, ao falar de seu livro, Peixoto refira-se à música só ao final, como se esse elemento não fosse assim tão forte. Mesmo durante a maratona, onde quase não ouvimos o som, mas apenas a torrente de palavras que correm na mente do personagem. Nessas passagens, a ausência da música é tão eloqüente quanto sua presença. Lembrando que a relação do autor com a música é muito forte, impossível evitar esse pensamento.
A música está presente no cemitério de pianos, impregnada no ar, transformada em algo concreto e palpável. E a paixão que ela inspira também. O Franciscos não apenas consertam pianos com o quem conserta um banco. Eles trazem a música de volta ao mundo, fazem nascer essa música, são apaixonados por ela. Há uma espécie de veneração a amarrar isso tudo.
E isso é reconhecido pelos personagens. O cemitério é trancado por anos, como que para impedir a música e o amor que vem com ela, indissociável, como se para apagar uma história, uma lembrança, uma dor. Ou será por ciúme? Ou por vingança? E enquanto o cemitério de pianos permanece trancado, a história segue suspensa, a espera. Só volta a fluir quando ele é de novo aberto. Então tudo recomeça. A mesma história uma e outra vez.
Peixoto lembrou das referências bíblicas. De Lázaro, que é ressuscitado por Cristo, como parece ressuscitar em seu filho, e no filho do seu filho e assim eternamente. De Marta e Maria, irmãs de Lázaro. De Simão, pai de Judas e também o leproso. Apontou a Bíblia como sendo forte referência em seu trabalho.
Exposição
Mas o que mais me chamou a atenção ao ouvir o autor neste sábado, e que acabei deixando para mencionar só ao final, foi seu comentário a respeito de uma das cenas do livro, tirada de uma cena real: a espera de um telefonema para comunicar a morte do seu pai. Essa era a pergunta que gostaria de fazer e não fiz. Como se dosa isso, essa exposição, essa relação obra e autor?
Peixoto parece tímido, mas desses tímidos corajosos e bem humorados que não se deixam intimidar com a própria timidez. Como se pode olhar para pessoas desconhecidas e falar sobre a morte do seu pai? Deve ser muito difícil lidar com essa imagem pública, com esse papel de autor. Especialmente quando se escreve.
Eu acredito que seja mais fácil conhecer um autor lendo seu trabalho do que falando com ele, convivendo com ele. Por isso, ainda me assusto com essa perspectiva de exposição, com essa falsa sensação de proximidade, de identificação.
Língua
Gosto do jeito como alguns autores portugueses lidam com a língua. É o caso do Peixoto. Invejo a confiança e a segurança. A proximidade. A intimidade. A liberdade com que subvertem as regras e moldam as palavras, as letras, os pontos e vírgulas. Não consigo evitar a idéia de que, afinal, a língua é deles antes de ser nossa. Nós herdamos. Para eles, é inata. Têm séculos de convívio antes de nós. Isso deve fazer diferença.
Controle
Em determinado momento, alguém fez algum comentário relacionando “Cemitério de Pianos” com outro livro do autor, na verdade, o primeiro a ser publicado, “Nenhum Olhar”. Peixoto fez um comentário ótimo a esse respeito. Lembrou que “Nenhum Olhar” foi escrito numa situação única, impossível de se resgatar ou repetir. O livro foi escrito sem a perspectiva de que seria lido, sem observadores.
Agora escreve sabendo que será lido, observado, comentado, analisado. Nunca mais um escritor num quarto sem janelas.
“Cemitério de Pianos” foi meu primeiro contato com a obra de José Luís Peixoto. Terminei e já li, em seguida, “Nenhum Olhar”. Também descobri que esses são os dois únicos livros dele publicados no Brasil. Uma pena.
José Luís Peixoto escreve prosa como se escrevesse poesia. Conheço pouco do trabalho dele, mas não há como evitar uma espécie de encantamento.
sexta-feira, 12 de setembro de 2008
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